Crónicas



               Quatro carcaças podres e enferrujadas daquilo que outrora foram barcos jazem sobre o areal branco, puro, imaculado. Podia ser tentada a pensar que estão enfeitiçados, esses esqueletos navegantes, essas armações-sustentáculo de léguas percorridas em busca de sustento.

               Mas não sou supersticiosa. Nem tão pouco me amedronto com velharias. Pelo contrário. Contemplo-as, inspecciono-as com o olhar, imagino-as jovens, robustas, pujantes, a desafiar as intempéries, as brumas e a espuma. Gosto de velharias! Porque embelezam o novo, o vazio e o sagrado… Tal como esta praia, onde também jaz sargaço aqui, sargaço ali, sargaço santuário para tantos animais.

               Podia deter-me nas declarações de amor cravadas na proa desses barcos adormecidos pelo tempo, declarações de jovens enamorados que mal sabem que a bonança não é o que tocamos em terra firme, mas antes o que alcançamos pelo meio das tempestades. Mas sou uma descrente e… Amor???!!!! Oh, o amor, essa ode marítima que nos faz olhar para lá da barra, para o infinito, causando náusea por ser tão imperfeito e enjoo por ser tão doce!

               Ainda assim, é esse mistério - o amor - sobre o qual me curvo que me traz até aqui… Tróia, esta península que me deixa na dúvida se tem ou não acento no nome. Este lugar fatiado por pedaços arenosos, águas azuis turquesa que abraçam águas azul safira. Esta restinga paralela à linha de costa, ornamentada com vegetação perfumada e bela, com o Atlântico e o estuário do rio Sado no horizonte. Esta língua de areia que na época romana terá sido uma ilha, a ilha de Ácala. Este santuário de aves. Este desenho de luz e contrastes azuis e verdes, digno de uma fotogaleria metáfora da perenidade dos momentos, se é que ela, a perenidade, existe. Tróia, a “Pompeia de Setúbal”, como lhe chamou o escritor Hans Christian Andersen.

               Se existe perfeição na Terra e neste Portugal à beira mar plantado, Tróia e o Portinho da Arrábida, do outro lado do mar que banha Tróia, competem nessa categoria de fascínio visual materializado em sedimentos com escarpas relvadas, em névoa de beleza, em brilho nas nossas dores, em águas cristalinas que se recusam a espelhar nuvens sombrias.

               É, pois, a imagem da pacatez divina recortada pelo bulício no mar e nos barcos o retrato de fundo desta minha visita, espécie de “mistério alegre e triste de quem chega e de quem parte”, como escreveu Pessoa.

               “Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada, da gente simbólica que passa e com quem nada dura”, como gritava o poeta, para onde me levas nestas águas paradas?

               A paragem é logo ali ao lado das carcaças dos barcos DESassombrados. A paragem é no complexo de salgas que uma interpretação mais alquimista pode fazer lembrar o feitiço que consiste em espalhar sal à porta de quem queremos mal ou os salgadinhos associados ao Dia das Bruxas… Mas já vos disse que não sou supersticiosa! Cá por mim, bruxarias, só nos contos literários e nos filmes. Não na vida real. Não as quero, não as tolero, não acredito nelas e não deixo que tenham espaço ao meu redor!


               Falo-vos, antes, da salga do peixe, essa prática de conservação de alimentos, materializada nas Ruínas de Tróia (http://troiaresort.pt/ruinas-de-troia), uma prática que perdurou do século I ao século VI e que transformou este local no maior centro de produção de salga de peixe do mundo romano. Seis séculos de história estão conservados neste complexo classificado como Monumento Nacional.

               Este povoado romano especializado na produção de conservas e de molhos de peixe, sobretudo sardinha, que eram transportados de barco para muitas regiões do Império Romano, foi, em tempos, o maior centro de produção de salgas de peixe do mundo.

               Percorre-se em cerca de meia hora. É composto por duas oficinas de salga de peixe, por termas, por uma necrópole, por um mausoléu e por um núcleo residencial chamado Rua da Princesa.

               As oficinas, espaços de trabalho de quem partilhava a vida solitária do mar e tinha tempo de sobra para se questionar sobre cada ida e cada chegada, faziam parte de uma fábrica de salga. Aqui, observamos 19 tanques de paredes de pedra já escavados (presume-se que haja mais 8 por escavar), onde se produzia a salga.

               As termas, hoje metáfora de relaxamento sobre águas eternas e de hipnose que nos afasta da palidez dos dias, mais não eram do que um espaço de banhos públicos de homens e mulheres que, depois do trabalho, ali podiam aliar a higiene pessoal ao convívio social. Pertença do dono da fábrica de salga, as termas, compostas por uma zona quente, pela sala tépida e por uma zona fria, destinavam-se à família do proprietário da fábrica e aos trabalhadores, fossem livres, fossem escravos.

               As amarras que nos roubam a vida e que nos acorrentam a uma dimensão desconhecida estão presentes na necrópole, um conjunto de sepulturas que indiciam os primórdios da penetração do Cristianismo em Tróia e que testemunham a ausência contínua do ser e a ebriedade do destino.

               Para chorar esse “soluço absurdo que as nossas almas derramaram” (repescando, de novo, Pessoa), o mausoléu, ao lado da necrópole, era o jazigo familiar pertencente ao proprietário de uma das oficinas. Albergou dois rituais funerários distintos: a inumação (enterro dos corpos inteiros em sepulturas construídas no chão) e a incineração ou cremação (queima dos corpos até serem reduzidos a cinza).

               Quando as entranhas se enrugam, quando o receio ancestral sobre o início e o fim se apoderam da nossa inquietude e dolorosa existência, quando o nosso corpo sente a indelével dor que deixa um vácuo adormecido dentro de nós, pouco mais resta senão deixarmo-nos ir… Pelos recantos do delírio, pela incompreensibilidade do cosmos, pelos caminhos que antes percorremos, mas que agora se confundem com alucinações, com exaltações do espírito. Alguns seres ter-se-ão deixado ir, deixado levar pela Rua da Princesa, a única zona habitacional conhecida no povoado de Tróia, de que faziam parte várias construções com piso térreo e primeiro andar, alinhadas ao longo da orla costeira.

               Cada hora marítima que traça o nosso devir (as mudanças pelas quais passam as coisas), cada raio de sol que cega cada poro da pele, cada vento forte e prolongado que nos faz engolir areia, cada frescura matinal que nos convida a correr pelas enseadas com cheiro a maresia, cada corpo angustiado que sente e ama estão presentes nas Ruínas de Tróia e na península de Tróia em si mesma.

               Mas para o descobrir e sentir, é preciso deixarmo-nos ir, deixarmo-nos levar, apagar os sentidos da instabilidade e da incompreensibilidade daquilo que nos rodeia. É preciso absorver o espaço como se não fosse, apenas, mais um destino de praia ou mais um amontoado de calhaus. É preciso deixar que as velharias se transformem em elegantes peças de antiquário. É preciso pedir a quem nos acompanha para pegar em nós às cavalitas, para que possamos olhar do alto, em plano picado, para dentro das pedras, para além das pedras, as profundezas labirínticas da terra e fotografá-las com o nosso olhar.

               Só assim, deixando-nos ir e deixando-nos levar, podemos ter histórias para contar a quem nos espera no cais. Só assim podemos desencalhar. Só assim podemos remar saudades de portos de abrigo e cravar juras de amor no peito e em proas de barcos apodrecidos. Só assim podemos aclarar a voz interior que nos sussura nas águas agitadas. Só assim podemos zarpar dos naufrágios a todo o vapor e entrar na barra que nos cede passagem e nos deixa ancorar.

Fátima Araújo, Julho'17
Jornalista da RTP





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