Crónicas



Comecemos pelo fim... Quando Slash sai de palco a fazer uma rondada, com as mãos no chão, depois do foguetório de artifício e dos confetis que acompanharam "Paradise City" (a última música do concerto de ontem dos Guns N' Roses, no Passeio Marítimo de Algés, em Lisboa), completa-se a imagem de uns rapazes revigorados e ainda com energia q.b. para surpreenderem com um espectáculo de duas horas e quarenta e cinco minutos.

Não creio que algum fã da banda que, como eu, assistiu a todos os concertos que os Guns já deram em Portugal tivesse grandes expectativas sobre esta reunião do grupo que, ao longo dos últimos 12 anos, alimentou mais animosidades e distâncias que algum casal de divorciados alguma vez possa ter protagonizado.

E não tinha grandes expectativas porque a sucessão de episódios fazia recear mais um flop... Senão, recordemos... Na memória de todos os seguidores da banda ainda está o amuo de Axl Rose (o mítico vocalista), no concerto no estádio de Alvalade, em 1992, depois de a banda ter sido recebida com arremesso de garrafas para o palco, por ter começado a actuação uma hora depois do previsto, actuação essa na qual Axl escorregou e caiu, tendo cantado deitado. No Rock in Rio Lisboa, em 2006, os Guns N' Roses também não convenceram, dada a ausência de Slash (o guittarista enfant-terrible, mas sempre o mais aplaudido do grupo), dada a ausência também de Duff McKagan (o baixista conciliador dos arrufos entre os boys, sobretudo, entre Slash e Axl) e dada a ausência dos restantes elementos da formação clássica dos Guns N' Roses. Em 2010, no Pavilhão Atlântico, a persistente ausência de Slash e a aposta num registo mais cénico, de luz e cor, deixou dúvidas sobre a qualidade interpretativa de Axl Rose.

Mas houve qualquer coisa, ou talvez muita coisa, diferente, ontem à noite. Registo o 2 de Julho de 2017, como o concerto em que que os Guns N' Roses mostraram, no Passeio Marítimo de Algés, que estão reconciliados não só com o público, mas sobretudo com eles próprios, que estão mais maduros, mais adultos, mais responsáveis. E claramente mais motivados e mais empenhados em reacender uma chama há muito apagada! Que o digam as 80 mil almas que o sentiram ao longo de todos os hits que o grupo tocou durante o concerto...

Mais uma vez, sem dúvida alguma, "Sweet child of mine", o hino guitarro-estridente dos Guns N' Roses, foi o que mais fez o público levantar os pés do chão...

O simbolismo dessa canção é duplamente importante. Porque, se é um cartão de visita da banda, tampém é um marco nesta ressurreição dos Guns N' Roses.

Porquê?! Porque "Sweet child of mine" é inspirada em Meegan Hodges, a ex-namorada de Slash, com quem ele voltou a namorar depois de se ter divorciado de Perla Hudson, uma assumida inimiga de Axl Rose, que (também) terá sido responsável pelo mal estar entre os elementos do grupo, culminando na separação dos Guns.

Ora, Meegan Hodges, sendo a protagonista e a musa inspiradora de "Sweet child of mine", um dos maiores sucessos da banda, foi também responsável pelo reagrupamento de todos os "egos desfuncionais" (como lhes chamou o Blitz) dos Guns N' Roses.

Reza a história que, depois de se ter divorciado de Perla Hudson, Slash voltou ao contacto com Axl através da nova namorada, Meegan, que levou a cabo contactos com Duff McKagan (baixista da banda) para intermediar a reunião do grupo.
E foi graças a Duff, a única pessoa que ainda conseguia falar com Axl e com Slash, que foi possível juntar, novamente, os Guns N' Roses, após 12 anos de projectos a solo duvidosos e de tentativas goradas de fazer renascer a formação, com outros elementos, que não os originais... Ei-los, portanto, de novo, juntos, estes motherfuckers com sete vidas!!

É verdade que há vícios que eles mantêm! Axl continua a trocar de casaca e de chapéu N vezes durante os concertos, mantém as camisas aos quadrados amarradas à cinta, continua a correr de uma ponta do palco à outra, como se estivesse possuído pelo diabo, não deixa de saltitar em roda do pé do microfone ou de balanceá-lo pelo fio. Slash continua a esconder a cara por trás dos óculos e daquela juba gadedulha, impondo sempre um semblante carregado, continua a usar cartola alta e anéis com caveiras, não deixa de exibir, de forma exímia, os seus dotes de guitarrista, tocando com a guitarra atrás da nuca. O teleponto continua em cima do palco, com as letras das canções, não vá o excesso de álcool ou drogas fazer esquecer o que cantar. Os Guns N' Roses continuam a homenagear em palco outras bandas tendo, desta vez, Axl interpretado "Black Hole Sun", dos Soundgarden (em memória de Chris Cornell, o vocalista dos Soundgarden que morreu recentemente) e tendo Slash e Richard Fortus tocado uma versão instrumental de "Wish you were here", dos Pink Floyd. A banda continua a não descurar os elementos cénicos e visuais do espectáculo, tendo recorrido nesta tourné à empresa Tait Towers, a mesma que já trabalhou, por exemplo, para os Rolling Stones, para os U2 e para Madonna. Os Guns N' Roses continuam a chocar pelos excessos semióticos ou de linguagem, importando aqui lembrar os esqueletos que apareciam a copular, enquanto o grupo interpretava "Rocket Queen", ou a incontornável e repetida expressão "Guns N' fucking Roses", que Axl recordou no fim do concerto, depois de ter agradecido com um "Thank you!".

Mas, vícios à parte, notam-se diferenças nestes renovados Guns N' Roses... Axl está mais sorridente: esboçou um dos sorrisos mais expressivos e matreiros da noite a meio de "Coma". Axl está mais comunicativo com o público. Perguntou-nos "How are you doing?", disse "It's a lovely evening, don't you think?" e falou-nos duma "very passionate song", antes de cantar "Patience". Duff parece mais atinado, mais equilibrado e mais distanciado dos efeitos das drogas pesadas que, em desespero, o levaram a pedir, no passado para o matarem. Até trouxe a mulher, nesta passagem por Lisboa. E os Guns N' Roses estão mais cumpridores: começaram o concerto à hora marcada, mostrando que é coisa do passado começar a actuação com uma hora de atraso, para que algum elemento da banda recupere do excesso de crack e whisky que consumiu.

É verdade que, estando os elementos fundadores dos Guns N' Roses na casa dos 50 anos, já acusam o desgaste físico, visual e vocal de décadas de excessos com sexo, drogas e rock n' roll... Duff é, seguramente, o elemento da banda com aspecto mais envelhecido. Axl apresenta feições estranhas, a parecer que fez plásticas na cara e a aparentar ter colocado coroas nos dentes, está gordo, nota-se que fica cansado a meio de algumas músicas e já não aguenta os falsetes vibrantes e prolongados, como nos tempos áureos. Slash também carrega uns quilos a mais, por trás daquele ar que cultiva de miúdo introvertido, que não gosta de ser o centro das atenções, mas que, fora dos holofotes, se transforma num rebelde.

Mas este concerto no Passeio Marítimo de Algés foi uma belíssima demonstração de metamorfose, de ressurreição, de auto-superação, de crescimento, de maturidade, de inteligência e mais uma demonstração de que nunca devemos dizer nunca!

Porque, apesar de Axl Rose ter dito, numa entrevista, em 2012, "not in this lifetime" (expressão que podemos traduzir como "nunca na vida"), referindo-se à (im)possibilidade de a banda voltar a juntar-se, ei-los na estrada, nesta digressão europeia designada, justamente, "Not in this lifetime tour". E ei-los a um excelente nível performativo e cénico e a conseguirem espelhar a imagem de que estão em paz e reconciliados!

Porque, afinal, como disse Axl depois de ter interpretado "Patience", "Guns is Guns"!

Porque, afinal, estes motherfuckers com sete vidas nunca deixaram de o ser e porque, afinal, como eles próprios fizeram questão de eternizar numa música, "Nice boys don't play rock n' roll"!!!

Fátima Araújo, Junho'17
Jornalista da RTP


Fotografia por Rita Carmo @ Blitz

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