Crónicas



Sentei-me num café da Baixa numa tarde de Domingo de sol a ver a vida a passar. Observei como quem sabe que ali não está tudo. Guardei nos olhos o que desfilava visível e imaginei na cabeça o que, invisível, não se deixava ver.

Os olhos abertos caíram sobre o que passava. Sobre os casais bonitos, com filhos roliços e roupas a condizer; sobre a mulher de óculos de sol que passeava um cão de raça pura; sobre os namorados apaixonados, de mão na mão ou de braços apertados; sobre grupos de adolescentes com semanada no bolso; sobre estudantes universitários com o mundo a descobrir num livro e discurso pronto a sair.
Passava a perfeição aparente em forma de sociedade representada. Passava a perfeição anunciada, a vida a correr bem à qual foram postos pernas e olhos despreocupados. Passava o “normal”, o esperado, o padrão, o perfeito aparente. Fazendo crer que a vida era aquilo, que a vida era assim.

Do outro lado da mesma rua, mas ainda à mesma distância do olho nu que observava, passava, em vez da harmonia aparente, a dureza assumida e crua, em forma de velho sozinho que caminha de olhos no chão ou de sem-abrigo sem casa nem tostões. O lado oposto da perfeição, apresentado tão visível e claramente como o primeiro, mostrando só um contraponto adivinhado, de uma sociedade onde os opostos coabitam e se veem. E eu sentada, vendo pedaços de mundo passar.

Apesar de tudo, eram as faces de uma moeda com duas caras, mas duas caras que se manifestavam, abertas e claras, perante os meus olhos que também se sentavam a ver. A realidade ali, exposta e apresentada, aparentemente completa, andando e coexistindo em ruas à minha frente.

Mas quando os olhos se fecharam à visão do óbvio, num espaço além do visível, do que nem passeia nem se mostra na Baixa, chegaram-me à memória e à pele relatos de outros mundos. Pedaços de uma realidade invisível que se esconde em lugares aonde se vai pouco. Os quotidianos que me chegam por relatos, por conversas, por confidências de amigos, de desconhecidos que se sentam a contar vidas em forma de sussurros ou desabafos. As histórias de vidas que se desenrolam longe dos olhares.
A realidade que se esconde em quartos de hospitais onde crianças têm doenças que lhes raptam os saltos em poças de água; em casas despidas de um agregado que vendeu tudo para pagar livros de escola, sapatos sem buracos, medicamentos urgentes; na discussão agreste que marca uma mão na cara de um dos que grita menos; nas cortinas corridas que filtram a luz de uma depressão; no espelho de um corpo magro que reflete uma imagem gorda e distorcida,...

A realidade invisível não se vê a olho nu, não caminha à luz da Baixa, não se passeia ao sol.
A assustadora gravidez indesejada, que faz crescer na barriga um ser que não tem lugar no desejo, guarda-se em paredes bem opacas.

A doença terminal que acaba de ser diagnosticada viaja a sós no corpo que conduz o carro em piloto automático.
A carta de despedimento guarda-se no bolso de quem compra o pão à pressa, sem pressa de regressar à casa que não sabe como poderá pagar.
A imperfeição invisível dos dias caminha lado a lado com o que deles vemos. Mostra-se só quando se faz possível abrir certas portas, penetrar fora dos rituais visíveis, conhecer interiores imperfeitos e tão reais quanto a vida que nos pauta a todos. Mostra-se quando há espaço e vontade de saber e espaço para suportar, em palavras e expressões, as cores agrestes de que cada uma se pinta.

A vida imperfeita mas invisível é feita das angústias vividas a sós, das perdas choradas no silêncio de casas fechadas ou de corredores sobrelotados, nas páginas escritas em segredo.

A imperfeição dos dias não passeia na Baixa. A humana imperfeição estende-se no quotidiano longe dos olhares comuns e torna mais igual do que diferente o panorama sentido daquilo que nos faz vivos.

Atrever-se a ver mais longe do que a realidade que passeia pela Baixa torna-se assim num exercício de humildade e compaixão, necessário à compreensão global de um mundo que não se desenha a negro e branco.
Difícil exercício, que traz peso aos ombros de quem ouve. Poderoso exercício, que aumenta o espetro do vivido.

Atrever-se a ver mais longe traz mais mundos para perto, aumenta e completa a imagem de um Ser que se constrói mais Humano, com tudo o que o de Humano se pode ser.
Atrever-se a mais longe amplia-nos como sociedade, afina-nos a paciência, aumenta-nos a compreensão.

E na visão sobre o invisível, no discreto observar do que caminha longe da vista cresço, crescemos, também como grupo de gente consciente de que os Domingos de perfeição na Baixa não são mais do que pedaços do real.
Conhecedores de mais do mundo e cientes de que a imperfeição não passeia ao sol, talvez possamos caminhar por um espaço onde a empatia aumente, a companhia nasça, o apoio se reforce.

Talvez assim os passeios pela Baixa tenham menos de perfeição, mais completude e mais do real de que fazemos todos, humanamente, parte.


Fotografia by Miguel Marecos

Edite Amorim, Março'17
www.thinking-big.com

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