Crónicas



O Jorge (pode ser outro nome), é um dentista (pode ser outro profissional liberal), que eu conheci por intermédio de um amigo, quando precisei de um especialista da sua área. Com o passar do tempo fui conhecendo do Jorge mais do que o profissionalismo, fui entrando na sua história.
Decidiu há uns anos trabalhar só parte da semana. O fim de semana e os dias à volta passa-os na sua casa no Gerês (pode ser outro lugar verde). Nesse tempo não descansa, não relaxa, não se esquece. Nesse tempo corta o mato à volta, fala com os proprietários que o rodeiam, procura consensos para eliminar excessos, pensa em estratégias de preservação da área, informa-se sobre as políticas locais que afetam diretamente aquela zona verde portuguesa tão imensamente importante. Durante aquele tempo o Jorge cuida. Durante esse tempo o Jorge “consome-se, perde anos de vida e sofre, sofre muito”, como diz sempre que lá vou.
Este mesmo Jorge tem um outro sonho, de um algo que fica mais longe. O Jorge sonha ir ver os narvais. Sonha chegar lá, apreciá-los, documentá-los, passar tempo naquele lugar, a sentir e entender aquela espécie em extinção. Sabe que um dia, talvez enquanto ele ainda exista nesta Terra, os narvais desaparecerão e não mais será possível vê-los, apreciá-los, testemunha-los, fazer parte do universo onde eles existam e recordá-los no olhar e na memória da pele.

Na vida real, os desejos entram em contradição: a manutenção da sua casa e vida no Gerês é incompatível, a nível económico e de tempo, com esses testemunho de perto, com que sonha acordado enquanto eu lá estou.
Por isso, às vezes, o Jorge fala em deixar tudo, em vender a casa no verde e viajar para longe, para perto dos narvais e do sonho.

O que eu nunca disse ao Jorge é tenho orgulho nele e na vida de preservação de algo tão precioso que ele tem tido. O que eu nunca lhe disse é que, se pudesse, lhe agarrava um pé a uma árvore e lhe pedia para ficar. Ficar para continuar a cuidar do Gerês, para continuar a gastar a sua energia com a preservação deste pulmão, para continuar a acreditar que é possível combater a devastação economicista desta beleza aqui tão perto.

O Jorge não sabe que esta troca da sua viagem de sonho pela manutenção tão empenhada de uma parte natural também em perigo, faz parte de uma missão maior, de uma contribuição admirável para um tecido precioso. O que o Jorge talvez não saiba é que enquanto ele aguentar o seu ímpeto de largar tudo e se mantiver a lutar pela reflorestação, pelo cuidado, pela integração do pedaço de verde de que é responsável, não é só da sua casa e vida que cuida, é um pouco de todos nós.

Há escolhas de vida feitas de atos individuais que salvam pedaços inteiros de eternidade. Há mini-gestos nos dias que prolongam em anos a existência de algo belo. E há desafios individuais que são contribuições incomparáveis para os ciclos viventes de todos nós.

Numa época em que parece que só fazendo muito justificamos verdadeiramente algo, reforço dentro de mim a certeza de que é pelos pequenos gestos perto que salvamos o mundo longe.

Como escrevia a holandesa Etty Hillesum nos seus diários que presenciaram e viveram o Holocausto, “Uma pessoa não deve querer atingir sempre grandes resultados. Mas devemos acreditar nos pequenos.”*
É (também) a ouvir as histórias uns dos outros com tempo e olhar; partilhando um livro que ajuda uma crise; levando uma caixa de comida já feita a quem acabou de ser mãe; ou tocando uma sonata numa igreja Românica que o mundo avança e melhora e se constrói e se reforça.
É (também) cumprimentando o punk viajante que toca flauta na rua, ensinando o idioma local ao estrangeiro que acabou de chegar à cidade ou convidando os vizinhos recém-chegados para um passeio de apresentação da cidade, que se salva um bocadinho de Humanidade do frio do não-lugar.

Há um ano passei alguns dias em vários pontos da Europa central e nos Balcãs a acompanhar Refugiados, a sentir o impacto dos meus passos nos seus, a ver a realidade e a sentir que podia pôr-lhe a mão e fazer a diferença. Era um sonho, uma vontade que não podia parar: queria estar, fazer, colaborar, antes que tudo acabasse e eu nada tivesse podido testemunhar, sem que eu me sentisse a contribuir para o que me parecia como uma espécie de salvação de um pouquinho de Humanidade.
Um ano depois, na vida quotidiana integrada numa cidade, tenho clara a certeza do que diz a Etty: que é também nos passos de todos os dias que a Humanidade se salva. Que, na impossibilidade de salvar os milhares de passos que caminham longe, podemos salvar todos os dias várias almas caminhantes dos sendeiros de vida nem sempre fáceis.
Fazendo o que sai de dentro, partilhando gestos de beleza ou cuidando o verde-pulmão, como o que faz o Jorge.

Eu sou pelos sonhos, querido Jorge, não penses que o comodismo me agrada ou que o pequenino me basta. Mas sinto com clareza que cuidar tão empenhadamente de uma casa verde dentro de uma área preciosa tem uma grandiosidade comparável à do ativismo por espécies desprotegidas a quilómetros de distância.
“A única certeza de como viver e o que fazer só pode provir das fontes que brotam lá no fundo de ti.”,* continua a Etty. E tu sabes, bem lá dentro, Jorge, que esse cuidado quotidiano com a casa onde uma rocha inteira habita a lareira (essa que tu dizes que te ‘faz sofrer muito, muito”) é o fogo que arde mais alto dentro de ti, porque faz a diferença no verde em que acreditas.

Pela minha parte, Jorge, amarro-te imaginariamente o pé à árvore mais bonita e agradeço-te por contribuíres, nos pequenos gestos que repetes a cada dia, para um mundo inteiro mais cheio de verde e cuidado.

* “Diário 1941-1943”, Etty Hilessum.

Dedicado à Sofia V., uma ativista pela educação formal e não-formal que a cada dia trabalha de forma incansável e que viajará em breve para junto dos Refugiados. Para que saiba que, mesmo que não chegasse a partir, o seu impacto diário através do exemplo de vida já salva e cria luz suficiente para manter muitos de nós no caminho certo e com pulmões mais cheios.


Fotografia by Miguel Marecos

Edite Amorim, 24 Janeiro'17
www.thinking-big.com

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