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Crónicas Fevereiro 2011 King Size & Light
Narciso inalou mais uma lufada de
dança na esperança de que, com ela,
as palavras lhe fluíssem ou, melhor
ainda, aparecessem magicamente
escritas na página em branco que tinha
debaixo do punho, e com elas a
música de que precisava.
Ainda se lembrava de quando tinha
começado a fumar. Era um jovem
adolescente, que vivia na garagem dos
pais, então transformada em sala de
ensaios, onde passava tanto tempo a
explorar novos caminhos para a arte,
como a sonhar o mais ínfimo detalhe
do enorme sucesso que o esperava,
ou que ele esperava - do Champagne
aos Emmy Awards, da limousine à
mansão com a piscina cheia de bikinis
do jet set.
Entre essas primeiras passas e o
momento actual, a sua jovem vida
tinha acontecido, exigindo-lhe decisões
sempre difíceis e em relação às quais
todo o pensamento ou nenhum parecia
fazer pouca diferença.
Quando, por exemplo, correu com a banda da sala de ensaios e com isso se empurrou
para uma carreira a solo, acreditava firmemente que do "Narciso e As Vaidades", que já
tinham sido apenas os "Vaidades", bastava apenas ele como força criativa. A tal força pela
qual pagaria agora um braço e uma perna só para pôr qualquer coisa de jeito no papel
branco que lhe irritava já os olhos.
O Mundo, pelo menos o dele, era agora diferente. Como se a Arte tivesse agora de
trabalhar para ele, e não o contrário. Afinal, o que mais importava era a elevação do
Artista Narciso à condição de marca, com a garantia de uma quota de mercado
considerável e, acima de tudo, crescente - significado máximo da sua aceitação como
artista. Daí aos biquinis seria um passo de pardal.
Entre um pensamento e outro, teve de puxar pelo 26º. King Size e Light eram as suas
preferências, um pouco como as do seu público - "King Size shows, Light on content".
Sorriu com a ideia e escreveu-a no papel. Encostou-se bem para trás na cadeira Belle
Epoque que suportava o seu musculado corpo, exigência da editora, deu uma enorme
passa no cigarro e fechou os olhos.
A suave luz que iluminava aquela sala de estar da Rua do Heroísmo, morada
criteriosamente escolhida, transformava-se numa ténue cortina quase preta. Quase. Nela,
manchas douradas apareciam e desapareciam em intervalos de alguns segundos,
fazendo lembrar os rasgos de inspiração que tinha quando a música era arte e não uma
hipoteca. Suspirou. Tinha crescido nos anos 70, e trauteou em absoluto silêncio 3 ou 4
melodias de canções marcantes da época. Tinham 18 minutos cada uma, e não menos
de 6 partes, sinais de um tempo em que a arte era conceptual, como deve sempre ser.
Seguiram-se os do 27 ao 30, acompanhados de lágrimas que ora agitavam a sua cortina
dourada de ideias, ora transbordavam para fora do seu corpo vazio delas. Quanto
pensamento seria necessário, e a quanto ajudaria, para decidir entre ser autêntico em
relação a uma arte ou em relação a um produto? Em relação a si mesmo ou em relação a
um público pouco crítico, predisposto e educado a trocar facilmente e sem cerimónia um
produto por outro, na cozinha assim como no iPod?
Por uma última vez abriu os olhos e voltou a olhar para o ambiente que a sua condição
tinha comprado. Num último gole de Champagne sentiu o sabor do seu sucesso enquanto
apreciava, num belíssimo quadro que adornava a lareira, o público que subsidiava a sua
existência. Seria efémera? É possível, até mesmo provável, mas acima de tudo era
confortável e próxima. Estava ali, King Size & Light. Pensar em quê? Para quê?
Sossegou. Com a alvorada da sua decisão levantou-se determinado. E com isso
adormeceu o mundo.
Joe Medicis
Percebeu então que a sua dificuldade criativa estava, como sempre está, na
autenticidade.
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