
O Verão atípico de 2014 há-de ficar na memória dos veraneantes e dos
festivaleiros. Um dia chove, outro dá sol. Um dia está nublado, outro dia o céu
apresenta-se azul sereno. Um dia o mar está calmo, noutro não se pode ir à água.
Ainda assim e a pouco menos de um mês do fim do Verão, olha-se para
trás em jeito de balanço e percebe-se que nem a chuva, nem os ventos e marés
afastam os amantes de música dos recintos onde ela convida ao exercício catártico de
libertação das corriqueiras rotinas.
Lembro-me, por exemplo, da primeira noite dos festivais deste ano do Nos
Primavera Sound, do Vodafone Paredes de Coura ou da noite em que os James
tocaram no Meo Marés Vivas. Chuva, chuva e mais chuva, humidade e mais
humidade a causar dores na lombar e na cervical. Apesar disso, pernas bronzeadas
exibiam recortados calções de ganga, ombros esfolados pelo sol seguravam alcinhas
de tops colados ao peito ou T-Shirts com os slogans da moda estampados na frente
ou nas costas e pés encardidos pelo pó e pela lama calçavam havaianas ou sandálias
de dedo.
O “mau tempo” até pode tentar os menos resistentes a "Getting away with it
(all messed up)", como cantava o vocalista dos James, Tim Booth, nessa noite muito
molhada e imprópria para público dado a crises das vias respiratórias. Mas a multidão
não arredou pé. Como raramente o faz, aliás. Jorge Silva, um dos organizadores do
Meo Marés Vivas, dizia-me, na altura, que “por norma, não se cancelam festivais
em Portugal, por causa da chuva”. E isso é uma nota de confiança para o “público
que sabe que vai ver quem pagou para ver”, independentemente das condições
meteorológicas, independentemente de ficar completamente encharcado ou não.
Com melhor ou pior tempo, só este Verão, os festivais portugueses já tiveram
mais de um milhão de espectadores. Os dados oficiais, avançados pela organização
dos principais eventos, indicam que o Rock in Rio Lisboa foi o mais visitado, com 345
mil pessoas, seguido do Meo Sudoeste, com 200 mil espectadores, do Nos Alive, com
155 mil, do Vodafone Paredes de Coura, com 120 mil visitantes, do Super Bock Super
Rock, com 90 mil, do Meo Marés Vivas, com 73 mil espectadores, e do Nos Primavera
Sound, com 70 mil.
Estes são, seguramente, os principais festivais de música em Portugal e
aqueles que fazem parte do circuito musical europeu e mundial. Mas o nosso país
apresenta, todos os anos, dezenas de festivais de música. Dados avançados pelo
Talkfest, o Fórum de discussão sobre o futuro dos festivais de música em Portugal,
indicam que, ao longo de 2014, já se realizou em Portugal mais de uma centena de
festivais e que, em 2013, houve, pelo menos, 127. O número está, certamente, muito
abaixo da realidade. Basta uma consulta rápida pelos sites dos 308 municípios do país
para constatar que, entre Junho e Setembro (os meses correspondentes ao Verão),
todos os municípios, ou quase todos, apresentam eventos musicais, ora mais urbanos,
ora mais rurais, ora mais alternativos, ora mais populares, ora mais conhecidos,
ora festivais de que nunca se ouviu falar. Estamos, portanto, a falar de centenas de
eventos musicais, de Norte a Sul do país.
Tratar bem
Mas o que faz de Portugal um palco tão acarinhado e admirado pelo público e
pelos artistas, se a experiência da música ao vivo pode ser vivida em qualquer recanto
do mundo?! Os bons cartazes atraem visitantes e motivam as bandas e intérpretes
a aceitarem tocar em Portugal, é certo, mas é mais que isso. O próprio país, a sua
geografia, a envolvência das suas gentes e o saber receber fazem toda a diferença.
João Carvalho, da organização do Vodafone Paredes de Coura, dizia-me,
quando o entrevistei este ano por ocasião do evento, que “acolher bem o público,
fazê-lo sentir como se estivesse em casa e dar-lhe condições para que ele fique” são
determinantes para conquistar visitantes que aumentam, de ano para ano. Condições
seja “ao nível do alojamento, da disponibilização e higienização das casas de banho
do recinto, da melhoria dos acessos ao recinto e da oferta de serviços dentro do
próprio recinto”.
Também Jorge Silva, da organização do Meo Marés Vivas, me lembrava que
“tão ou mais importante que os artistas é o público”. E Jorge Silva apontava como
motivo para o contínuo aumento de espectadores dos festivais portugueses o facto de
os festivais serem “provavelmente, o único local onde as pessoas são bem tratadas e
onde as pessoas contam”. Jorge Silva explicava-me que “durante o ano, as pessoas
são mal tratadas nos locais de trabalho, nas repartições públicas, nos hospitais, nos
restaurantes apinhados de gente”, mas que encontram nos festivais “quem as faça
sentir bem, quem as faça rir, sorrir e libertar”.
Álvaro Covões assumiu, nas entrevistas que deu às rádios e televisões, este
ano, que a ambição de apresentar no Nos Alive, todos os anos, “o melhor cartaz de
sempre”, obriga a “trabalhar muito”, obriga a “programar e preparar o cartaz do ano
seguinte com 14 meses de antecedência”, para que “não falhe nada naquilo que
é exigido pelas bandas e cantores”, para “conciliar agendas” e para “assegurar a
logística de transportes por estrada de muitos artistas”.
As estrelas também sentem e prezam esse saber receber e esse tratar bem.
Entre os episódios dos festivais, conta-se a história de Dave Grohl, dos Foo Fighters,
um dos mais simpáticos músicos que terá passado por Paredes de Coura e que, no
dia em que chegou, cumprimentou desde a senhora da limpeza até aos promotores
do Festival. Igualmente Tim Booth, o vocalista dos James, disse, na primeira vez que
actuaram no Marés Vivas, em 2008, que “a banda é que devia pagar caché” por ser
tão bem recebida, com tão bons vinhos e com uma “paisagem frente ao rio Douro tão
desconcertante”.
“Tudo é lindo”
A gastronomia e a excelente carta de vinhos portugueses somam pontos na
apreciação dos artistas que actuam nos festivais portugueses (da lista de exigências
dos artistas constam frequentemente petiscos típicos portugueses e vinhos nacionais),
mas é, sobretudo, a paisagem e a envolvência do público que mais seduzem quem
sobe aos nossos palcos. E, neste aspecto, o Vodafone Paredes de Coura e o Meo
Marés Vivas estão na linha da frente.
Como um amor antigo que renasce numa noite à beira-rio, em 2009, os
membros dos Scorpions, que não falavam uns com os outros há anos e que se
limitavam a juntar-se em palco para tocar, romperam o amuo de desavenças antigas
e estiveram descontraidamente à conversa, nos sofás duma tenda com cobertura
de palha, no backstage, embalados por um vinho do Porto vintage, e rendidos à
“maravilhosa paisagem” do rio Douro com vista para a foz e para o Porto, enquanto
comentavam o “fervor do público português”.
Os escoceses Franz Ferdinand que, este ano, repetiram a actuação em
Paredes de Coura, onde tinham tocado em 2009, começaram o espectáculo dizendo
que “é sempre um prazer regressar a um local tão bonito como este”. Também o
músico norte-americano Seasick Steve, que este ano tocou na vila minhota, classificou
o anfiteatro natural da praia fluvial do Tabuão, onde decorre o Vodafone Paredes de
Coura, como o mais bonito de todos os festivais que visitou, dizendo “este é, juro por
tudo, o festival mais bonito onde toquei”. Igualmente o multi-instrumentista canadiano
Mac DeMarco, que integrou o cartaz da segunda noite do Paredes de Coura deste
ano, exclamou aos microfones que “tudo é lindo” e que, por isso, esperava “voltar em
breve”. Em 2012, os elementos dos noruegueses kings of Convenience, rendidos à
ruralidade da região, misturaram-se com os veraneantes da praia fluvial do Tabuão e
apanharam sol, de tronco nu, num bote de borracha, enquanto tocavam guitarra.
Na história deste festival contam-se, ainda, inúmeros artistas que preferem
ficar alojados em casas de turismo rural, próximas de Paredes de Coura, prescindindo
do conforto das grandes unidades hoteleiras do Porto. Foi o caso, por exemplo, dos
próprios kings of Convenience, em 2013, dos Cleatahs, este ano, e dos Tindersticks,
em 1997. Inédito nas 21 edições do Paredes de Coura foi o facto de a dupla Buke and
Gase ter comunicado à organização que queria ficar instalada numa tenda da zona de
campismo do festival.
Não é de estranhar, por tudo isto, que os festivais portugueses sejam
frequentemente nomeados para vários prémios. O Alive e o Paredes de Coura, por
exemplo, já foram, algumas vezes, nomeados nas categorias de Melhor Festival de
Grande Dimensão e como Festival Favorito dos Artistas, nos Europe Festival Awards.
Encontro de nações
A par das singularidades da geografia de Portugal, do bom tempo a que o país
é associado, da gastronomia apetecível e do espírito hospitaleiro dos portugueses,
o preço acessível dos bilhetes dos festivais também contribui para as dezenas de
milhar de turistas estrangeiros que, de ano para ano, procuram os festivais de Verão
portugueses.
Se juntarmos a todos esses aspectos a qualidade dos cartazes, capazes
de aglomerar diferentes gerações, massas e públicos diferenciados e alternativos,
compreendemos a aposta diversificada em eventos tão variados como os que juntam
o mainstream do pop e do rock, os eventos que se dedicam em exclusivo à música
portuguesa como o Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos, em Tomar, os eventos
centrados na world music, como são o caso do FMM de Sines e do Med de Loulé, os
eventos dedicados ao jazz, de que é exemplo o EDP Cool Jazz, ou os eventos que
apostam na música electrónica, de que o Boom Festival é expoente máximo. E se
juntarmos a tudo isto a estratégia visionária dos organizadores de deslocalizar a oferta
urbana para meios mais rurais e pitorescos, percebemos o sucesso de tantos eventos.
Só este Verão, os festivais portugueses já terão contabilizado mais de 50 mil
estrangeiros. O Nos Primavera Sound trouxe ao Porto 12 mil visitantes internacionais;
o Nos Alive levou a Lisboa 16 mil, oriundos de 53 países diferentes; o Meo Marés
Vivas estima ter atraído 4 mil estrangeiros; o Vodafone Paredes de Coura voltou a ser
invadido por espanhóis, dada a proximidade da vizinha Galiza. Espanhóis, ingleses,
alemães, italianos estão entre o público estrangeiro mais recorrente em Portugal.
Este encontro de nações tem um impacto directo notório nas economias locais, no
turismo em Portugal e no aumento de dormidas nas unidades hoteleiras nacionais.
Um impacto económico difícil de contabilizar, mas assumido por todas as partes
envolvidas.
O perfil dos festivaleiros portugueses, realizado pela equipa organizadora do
Talkfest - Fórum sobre o futuro dos festivais de música em Portugal, indica que os
frequentadores dos festivais portugueses são, sobretudo, jovens. A faixa etária dos 17
aos 20 está em maioria (30,62%). Metade do total dos festivaleiros tem entre os 21 e
os 30 anos (26,32% de 21 a 24 anos e 23,44% dos 25 aos 30). Dos 31 aos 40 anos,
são 17,22% os visitantes dos festivais. 2,40% estão entre os 41 e os 65 anos.
As mulheres festivaleiras estão em maioria: 57% contra 43% de homens.
Quase metade, 50%, dos inquiridos no estudo da Talkfest tem Licenciatura,
32% frequentou o Ensino Secundário e 15% tem Mestrado.
O rendimento médio mensal dos festivaleiros que têm emprego não é muito
elevado. A maioria dos inquiridos, 45%, tem rendimentos entre zero e mil euros; 21%
entre zero e 500 euros; e 24% entre 500 e mil euros.
Com mais ou menos rendimentos, com mais ou menos gastos, com mais ou
menos decibéis, um festival em Portugal é mais que uma performance. De tal forma
que o protagonismo de Portugal no segmento dos festivais tem tido eco na imprensa
internacional de referência, que frequentemente coloca os festivais lusos entre os
melhores. Recentemente, a agência de notícias espanhola EFE descrevia Portugal
como "o novo paraíso dos apreciadores de música ao vivo”.
A meca dos festivaleiros fica neste rectângulo de 92 mil quilómetros quadrados,
rodeado pelas águas do Atlântico e pelas montanhas do Sudoeste europeu.
Não será exclusivo de Portugal os postais ilustrados e as imagens mentais
que os festivaleiros levam para casa. Mas a conjuntura dos festivais portugueses
permite aos seus frequentadores guardar memórias fotográficas como, provavelmente,
nenhum outro festival de qualquer outro canto do mundo lhes proporciona.
Memórias fotográficas de ovelhas a pastar e a comer peras caídas das árvores,
nos descampados onde montam as tendas; memórias fotográficas de paquetes
internacionais de luxo atracados no porto da capital, ao lado do recinto do festival;
memórias fotográficas do pôr de sol a abraçar os areais que circundam os espaços
dos festivais; memórias fotográficas de idiossincráticas tribos urbanas sentadas
em roda, à volta de conservas e cervejas portuguesas, a tocar guitarra e a falar a
linguagem universal que é a música.
Fátima Araújo
Jornalista da RTP