
Um dia seremos velhos.
Se os anos nos acompanharem, se a saúde nos lá fizer chegar, se uma praga não
nos matar corpo ou alma, chegaremos a velhos.
Um dia as rugas serão mais do que a pele lisa, os cabelos perderão a cor de
juventude, as articulações ganharão pedaços que não estão existem ainda. A
flacidez chegará, as curvas na coluna, os calos nos pés, os sinais nas mãos.
Um dia seremos velhos.
Nesse dia, quando a memória já não for capaz de reter tudo o que os dias
viveram, e as pernas não acompanharem cinco lanços de escadas, que a
dignidade viva, de cabeça erguida.
Nesse dia, quando as roupas pingarem um pouco mais e os olhos virem um
pouco menos, que tudo o que os anos trouxeram permaneça intacto, preservado,
inteiro. Inteiro o ser que acolhe todos esses anos, toda essa vida.
Agora nos meus trintas, e enquanto o vento me sopra nas pernas ágeis, penso no
que serei quando os anos tiverem passado mais por mim e por elas. Penso no
quanto desejo encontrar-me íntegra, coerente com o que este inicial assentar de
raízes me tornou.
Penso nos amigos e no quanto desejo vê-los a envelhecer também em beleza de
dentro. Como seremos nós quando as rugas chegarem e o cabelo enfraquecer?
O que se manterá do que somos? O que se perderá, o que chegará?
Porque um dia seremos velhos.
E para que a velhice não me assuste, desejo pensá-la como um caminho
continuado, e não como um fim anunciado. Quero pensar que me tornarei mais,
não menos.
Há pouco tempo ouvi de um amigo: “Um dia serás uma velhotinha com histórias
para contar. Daquelas que a malta nova encontra e até fica a ouvir”. E pensei que
não queria ser uma velhotinha que “até” se fica a ouvir. Pensei que todos os
velhotinhos deveriam ter filas diante, filas de gente a querer ouvir, a desejar
saber como foi, quanto coube naqueles dias, que coisas os fizeram, como eram os
antigamentes de que só eles guardam lembrança.
Pensei, senti, que não devia ser exceção sentir que “até” há muito para se ouvir
de um “velhotinho”. Que devia ser óbvio para nós, desde que começamos a
caminhar, que os passos de quem por cá mais andou trazem sabedoria aos
passos que daremos.
Há muito, na idade que vai passando. Há vida infinita, conhecimento, experiência,
sabor. Há História em primeira pessoa, factos e objetos de tempos que foram
diferentes. Há vivências de uma vida em que as regras, o sistema, as ruas, a
política, a comida eram diferentes. Há lições de Sociologia, de Antropologia, de
Filosofia, a serem ditadas na primeira pessoa. Há conhecimento de que
necessitamos, tempo dado ao passado para construir e perceber o presente, para
criar o futuro.
A idade far-me-á com certeza ainda mais teimosa, mais insistente, menos
paciente. Ouvirei mal as perguntas que me façam, custar-me-á articular
respostas rápidas, quem sabe.
Nessa altura, que me desculpem se os ouvidos não deixarem entrar as perguntas
tão velozmente quanto desejam, e as respostas não saiam tão coerentes quanto
precisem. Mas sentem-se comigo. Sentem-se comigo, e com os outros como eu, e
esperem que as histórias venham, no tempo ao nosso tempo. Teremos muito
para contar, em forma de vivências que o tempo trouxer.
Porque os anos trazem histórias. E as histórias de tempos que já passaram darão
um contexto e uma continuidade ao que, quem ouve , estará a criar e a construir
de si. Os meus passos, e os dos outros “velhotinhos”, darão um passado com o
que construir os futuros de quem se sente connosco, a ouvir, a beber, a rir, a falar
alto, a inventar.
Levanto, por isso, a cabeça ao tempo por vir, ao tempo a andar, à idade a avançar.
Levanto a cabeça para o ver, para o ver com bons olhos, com dignidade de quem
resiste ao tempo e cá permanece, cheio de mundo.
Baixo, por isso, a cabeça, em sinal de respeituoso afeto pela sabedoria
acumulada, pela resistência de quem viu o tempo passar e cá ficou, a viver os
dias e a criar-se neles, mesmo depois de retirados de uma profissão, do papel de
chefe de família, ou da carta de conduzir.
Construa-se, pois, um futuro em que o envelhecer nos dê referências, nos conte
histórias, e nos dê raízes.
A nós, que ainda não somos velhinhos, cresça-nos a vontade de começar a criar,
nas gerações que depois terão de nos ouvir as histórias, uma imagem bela,
poderosa e rica do que queremos que seja o envelhecer.
Leio as palavras do Tiago Pereira, a propósito da sua “A Música portuguesa a
gostar dela própria” e ecoam: “Porque faço o que faço? Porque acredito num mundo
melhor, acredito que as coisas podem ser de outra maneira (…). Acredito no ouvir e acredito
que é preciso consciencializar todos a ouvirem os mais velhos, a escutarem os avós!”. Ecoam.
Animem-se, pois, os projetos** que iluminem a riqueza dos anos a passar.
Multipliquem-se as imagens das capacidades que permanecem e se ganham,
mais do que as faculdades que se perdem. Potencie-se a imagem do que é “ser
velho”, enobreça-se a resistência à idade e à vida a passar.
Porque “viver todos os dias cansa”, como diz o Pedro Paixão, e quem viveu mais
merece a homenagem por ter resistido a mais dias de chuva e vento.
Ouçam-se as histórias, olhe-se nos olhos, sorria-se mais. Abrace-se mais, porque
com a idade já se perdeu, provavelmente, mais gente da que nos costumava
abraçar.
Que as rugas não apaguem o que fomos. Que a memória não leve o que vivemos.
Que o futuro comece agora, co-construído com quem também acredita que
seremos uns “velhinhos curtidos” que já deram beijos de língua, gritaram alto de
prazer e saltaram como se não houvesse amanhã a ouvir uma música em frente
ao palco.
Hoje, num dia de sol a sentir as pernas ágeis, animo à urgência de repensar um
futuro onde vamos querer morar com gosto.
Às minhas avós, que partiram sem que delas tivesse sabido ouvir tudo e que
deixaram histórias e memórias que só a idade me tem vindo a ensinar a apreciar.
** Alguns projetos que promovem uma visão construtiva deste crescer nos anos:
- Eu ainda sou do tempo - https://www.facebook.com/pages/Eu-ainda-sou-do-
tempo/509925279116002?fref=ts
- Palhaços d’Opital - https://www.facebook.com/PalhacosdOpital
- Clowncare - https://www.facebook.com/clowncare
- A +: Avós na escola: https://www.facebook.com/avosmais?fref=ts
- A Avó veio trabalhar -
https://www.facebook.com/AAvoVeioTrabalhar?fref=ts
- A Música nos Hospitais:
https://www.facebook.com/musicanoshospitais?fref=ts
- A Música portuguesa a gostar dela própria:
https://www.facebook.com/amusicaportuguesaagostardelapropria?fref=nf
Edite Amorim, 27 Agosto'15
www.thinking-big.com/blog