Mais Crónicas Fenther

Crónicas

Agosto 2015


Pedaços de Pensar Grande
“Um dia seremos velhos”

Um dia seremos velhos.
Se os anos nos acompanharem, se a saúde nos lá fizer chegar, se uma praga não nos matar corpo ou alma, chegaremos a velhos.
Um dia as rugas serão mais do que a pele lisa, os cabelos perderão a cor de juventude, as articulações ganharão pedaços que não estão existem ainda. A flacidez chegará, as curvas na coluna, os calos nos pés, os sinais nas mãos.
Um dia seremos velhos.

Nesse dia, quando a memória já não for capaz de reter tudo o que os dias viveram, e as pernas não acompanharem cinco lanços de escadas, que a dignidade viva, de cabeça erguida.
Nesse dia, quando as roupas pingarem um pouco mais e os olhos virem um pouco menos, que tudo o que os anos trouxeram permaneça intacto, preservado, inteiro. Inteiro o ser que acolhe todos esses anos, toda essa vida.

Agora nos meus trintas, e enquanto o vento me sopra nas pernas ágeis, penso no que serei quando os anos tiverem passado mais por mim e por elas. Penso no quanto desejo encontrar-me íntegra, coerente com o que este inicial assentar de raízes me tornou.
Penso nos amigos e no quanto desejo vê-los a envelhecer também em beleza de dentro. Como seremos nós quando as rugas chegarem e o cabelo enfraquecer?
O que se manterá do que somos? O que se perderá, o que chegará?

Porque um dia seremos velhos.
E para que a velhice não me assuste, desejo pensá-la como um caminho continuado, e não como um fim anunciado. Quero pensar que me tornarei mais, não menos.

Há pouco tempo ouvi de um amigo: “Um dia serás uma velhotinha com histórias para contar. Daquelas que a malta nova encontra e até fica a ouvir”. E pensei que não queria ser uma velhotinha que “até” se fica a ouvir. Pensei que todos os velhotinhos deveriam ter filas diante, filas de gente a querer ouvir, a desejar saber como foi, quanto coube naqueles dias, que coisas os fizeram, como eram os antigamentes de que só eles guardam lembrança.
Pensei, senti, que não devia ser exceção sentir que “até” há muito para se ouvir de um “velhotinho”. Que devia ser óbvio para nós, desde que começamos a caminhar, que os passos de quem por cá mais andou trazem sabedoria aos passos que daremos.

Há muito, na idade que vai passando. Há vida infinita, conhecimento, experiência, sabor. Há História em primeira pessoa, factos e objetos de tempos que foram diferentes. Há vivências de uma vida em que as regras, o sistema, as ruas, a política, a comida eram diferentes. Há lições de Sociologia, de Antropologia, de Filosofia, a serem ditadas na primeira pessoa. Há conhecimento de que necessitamos, tempo dado ao passado para construir e perceber o presente, para criar o futuro.

A idade far-me-á com certeza ainda mais teimosa, mais insistente, menos paciente. Ouvirei mal as perguntas que me façam, custar-me-á articular respostas rápidas, quem sabe.
Nessa altura, que me desculpem se os ouvidos não deixarem entrar as perguntas tão velozmente quanto desejam, e as respostas não saiam tão coerentes quanto precisem. Mas sentem-se comigo. Sentem-se comigo, e com os outros como eu, e esperem que as histórias venham, no tempo ao nosso tempo. Teremos muito para contar, em forma de vivências que o tempo trouxer.
Porque os anos trazem histórias. E as histórias de tempos que já passaram darão um contexto e uma continuidade ao que, quem ouve , estará a criar e a construir de si. Os meus passos, e os dos outros “velhotinhos”, darão um passado com o que construir os futuros de quem se sente connosco, a ouvir, a beber, a rir, a falar alto, a inventar.

Levanto, por isso, a cabeça ao tempo por vir, ao tempo a andar, à idade a avançar. Levanto a cabeça para o ver, para o ver com bons olhos, com dignidade de quem resiste ao tempo e cá permanece, cheio de mundo.
Baixo, por isso, a cabeça, em sinal de respeituoso afeto pela sabedoria acumulada, pela resistência de quem viu o tempo passar e cá ficou, a viver os dias e a criar-se neles, mesmo depois de retirados de uma profissão, do papel de chefe de família, ou da carta de conduzir.
Construa-se, pois, um futuro em que o envelhecer nos dê referências, nos conte histórias, e nos dê raízes.

A nós, que ainda não somos velhinhos, cresça-nos a vontade de começar a criar, nas gerações que depois terão de nos ouvir as histórias, uma imagem bela, poderosa e rica do que queremos que seja o envelhecer.

Leio as palavras do Tiago Pereira, a propósito da sua “A Música portuguesa a gostar dela própria” e ecoam: “Porque faço o que faço? Porque acredito num mundo melhor, acredito que as coisas podem ser de outra maneira (…). Acredito no ouvir e acredito que é preciso consciencializar todos a ouvirem os mais velhos, a escutarem os avós!”. Ecoam. Animem-se, pois, os projetos** que iluminem a riqueza dos anos a passar.
Multipliquem-se as imagens das capacidades que permanecem e se ganham, mais do que as faculdades que se perdem. Potencie-se a imagem do que é “ser velho”, enobreça-se a resistência à idade e à vida a passar.
Porque “viver todos os dias cansa”, como diz o Pedro Paixão, e quem viveu mais merece a homenagem por ter resistido a mais dias de chuva e vento.

Ouçam-se as histórias, olhe-se nos olhos, sorria-se mais. Abrace-se mais, porque com a idade já se perdeu, provavelmente, mais gente da que nos costumava abraçar.
Que as rugas não apaguem o que fomos. Que a memória não leve o que vivemos. Que o futuro comece agora, co-construído com quem também acredita que seremos uns “velhinhos curtidos” que já deram beijos de língua, gritaram alto de prazer e saltaram como se não houvesse amanhã a ouvir uma música em frente ao palco.

Hoje, num dia de sol a sentir as pernas ágeis, animo à urgência de repensar um futuro onde vamos querer morar com gosto.


Às minhas avós, que partiram sem que delas tivesse sabido ouvir tudo e que deixaram histórias e memórias que só a idade me tem vindo a ensinar a apreciar.


** Alguns projetos que promovem uma visão construtiva deste crescer nos anos:
- Eu ainda sou do tempo - https://www.facebook.com/pages/Eu-ainda-sou-do- tempo/509925279116002?fref=ts
- Palhaços d’Opital - https://www.facebook.com/PalhacosdOpital
- Clowncare - https://www.facebook.com/clowncare
- A +: Avós na escola: https://www.facebook.com/avosmais?fref=ts
- A Avó veio trabalhar - https://www.facebook.com/AAvoVeioTrabalhar?fref=ts
- A Música nos Hospitais: https://www.facebook.com/musicanoshospitais?fref=ts
- A Música portuguesa a gostar dela própria: https://www.facebook.com/amusicaportuguesaagostardelapropria?fref=nf

Edite Amorim, 27 Agosto'15
www.thinking-big.com/blog

Mais Crónicas Fenther