
Duvidei muito sobre o tom a dar este artigo. Tinha claro o que queria escrever e
o foco sobre que queria refletir. Mas não encontrava o tom. Escrever em primeira
pessoa fazia-me recear o tom de auto-referência puro; escolher o infinitivo
retirava-lhe a âncora a um eu e tu; escolher a segunda pessoa do singular fazia-
me pensar no tom pseudo-orientador dos que guiam quem não sabe.
Decidi-me pelo último, por poder falar aos outros “tus” que leem estas palavras,
deixando clara a despretensão de guiar e deixando só o desejo de imaginar uma
conversa com uma caneca de chá na mão, permitindo as frases ditas com vontade
de partilha e pergunta.
É a ti, portanto, que escrevo, em conversa de fazer-nos sentir mais. Desde uma
perspetiva onde cada um já é algo, completo em si, sábio ou sabedor, evoluído ou
avançado, mas não prescinde de ser mais.
E escrevo precisamente sobre estas conversas-encontros. Sobre o crescer
conjunto, sobre a partilha de caminhos feita com outros. Sobre a procura das
Tribos, de gente “como nós” que, sem ser igual, se junta ao que construímos do
Ser que procuramos ser.
Escrevo sobre a importância das referências, dos ecos, dos reflexos, dos espelhos.
E sobre como cada um deles, depois de filtrado, constrói um pouco mais de nós,
de mim, de ti.
E pergunto, pergunto-me, pergunto-te: com quem te constróis? Como te fazes o
que és? Como ergues um ser coerente, forte desde dentro, inteiro por fora?
E como resistes, nesse caminho, às referências com que não encaixas, às vozes
que fazem duvidar, aos silêncios que não acalmam?
Escrevo desde o ponto consciente de que ser quem se é, tem agregados todos os
seres com quem se vai cruzando pelo caminho. Todas as histórias ouvidas, todos
os segredos partilhados, os passos dados lado a lado, os momentos infinitos de
outros, as palavras a escorrerem ou a escaparem-se deles. Todas as palavras
lidas em livros e jornais, impressas em t-shirts ou grafitadas em paredes. Todas
as mensagens que chegaram ou que se foram buscar, conscientemente ou sem se
saber.
A construção com o outro, pelo outro. Diretamente num encontro atual,
indiretamente pela sua mensagem trazida do passado. Num puzzle de
referências e inspiração que se compõe a cada encontro voluntário ou fortuito,
direto ou indireto. E na importância da procura de “outros” que tenham um peso
bom naquilo que será a marca que nos deixará.
Que “outros” chegarão perto, que outros terão que permanecer longe? Que
referências ultrapassam os limites da pele e quais se deixam fora de qualquer
membrana porosa?
Eu não sou crente. Mas sempre falei dos meus “deuses dos dias”. Gente,
conhecida ou não, viva ou não, contemporânea ou não, que de algum modo traz
um pouco mais de luz sobre o caminho a fazer. Gente que deixou cair a frase
certa, que fez a pergunta no momento perfeito, que estendeu a mão na
velocidade perfeita, que criou a provocação pertinente. Gente com quem, na
maior parte das vezes, nem se partilhará mais tempo do que o encontro único
que se produz, seja cara a cara ou nas páginas de um livro. Mas que deixa
material para ser processado durante uma vida. Que nos faz mais, que nos faz
quem somos, quem seremos e no que nos vamos, gradualmente transformando.
Que dão o pedaço de força extra, ou se revelam o guia certo num cruzamento de
vias em que os olhos hesitavam entre esquerda ou direita.
A Tribo. A nossa Tribo. Os que, sendo “outros”, nos fazem nós.
Os autores que lemos, os amigos que fizemos, os desconhecidos que ficaram, os
pedaços de arte que nos entraram. Os que falam a mesma língua, ou uma que,
não sabendo ainda, queremos aprender.
Os que fazem com que, nesta terra estranha onde somos estranhos, estejamos
um pouco mais acompanhados e perto.
Numa procura não ávida, já que, com avidez, qualquer um correrá o risco de
servir e encaixar. Mas uma procura com a calma de arriscar a que demore mais,
mas venha para ficar. Sem procurar respostas, só pistas; sem pretender
verdades, só luz que encaixe num momento.
Na tua fé agarra o(s) teu(s) deus(es). No teu ateísmo encontra as tuas forças.
Mas envolve-te sempre da tua Tribo. Procura quem te entende as ideias, quem te
escuta sem falares, quem percebe o movimento do teu diafragma, quem sabe o
que os teus silêncios significam e o que dizem as inquietações que te fazem
ondular as entranhas.
Procura acreditando que existem. Procura sabendo que estão aí, soltos ou
perdidos, disponíveis ou escondidos. Disfarçados de pessoa na rua, disfarçados
de letra de música, disfarçados de poeta do século XIX. Mas que estão aí. E talvez
também procurem por ti, alien estranho, tu.
E quando alguma coisa vibrar no que vês, no que ouves, na forma como o teu
corpo ganha um balanço para a frente, então estarás em presença de um pedaço
que vale a pena agarrar. Um pedaço que será pulido, que será lido por quem já és
e que só se juntará se a ressonância se ouvir depois do eco passar.
Será um pedaço de Tribo a fazer mais de ti, mais de nós, mais connosco.
*** Título inspirado no livro “A um deus desconhecido”, de John Steinbeck, de
onde a frase “(...)Na sua sabedoria, necessitará de força” me gritou que pusesse
mãos à obra e escrevesse este texto.
Fotos: Eduardo Faria
Edite Amorim, 18 Março'15
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