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Setembro 2012


A Anatomia da Revolta

A Anatomia da Revolta

Ontem acordei com a notícia de um amigo que, abnegadamente, se sentou na rua mais movimentada da cidade do Porto e, de cabeça baixa mas coragem bastante erguida, iniciou uma greve de fome motivada pela necessidade de um emprego justo e digno. São amigos assim que me dão vontade de lutar e não cair, mais uma vez, no absurdo e inócuo que é fazer-se activismo virtual ou manifestações estéreis que não levam a lado nenhum e só deprimem.

Há toda uma onda de desilusão provocada pelas recentes medidas de austeridade. Compreendo porque, tal como todos, sinto na pele as restrições mas não são elas que me fazem baixar os braços. Bem pelo contrário.
Antes de mais, é fundamental alterar o paradigma da riqueza, o desejar o último modelo de telemóvel, de computador, o plasma mais fino, o carro mais potente, as roupas de marca, os pensamentos e ideias pré-concebidas. É fundamental e urgente um despojamento material, quando o dinheiro já não é mais suficiente qual a imediata solução para alguns? A desilusão, o desespero, a morte lenta por desalento nos casos mais extremos. Mesmo em época de crise, de contenção salarial, de redução dos direitos e liberdades ganhas em Abril, apesar dos malfadados tempos, vivemos ainda imbuídos de uma liberdade que não existe em mais de metade dos países, somos ainda parte do dito primeiro mundo, do lado rico do planeta e estas dificuldades que agora aparecem não são elas próprias consequência mais do que esperada do capitalismo gritante das últimas décadas? Mais de metade do mundo passa fome obscena e vive abaixo das mais básicas e mínimas condições de sobrevivência e a nós, meninos do mundo rico, basta um aumento de uma taxa para virarmos baratas tontas sem já chão nos pés.

No próximo sábado, dia 15 de Setembro, estão marcadas manifestações por todo o país. Eu não vou, estarei a trabalhar. Desdobrarei-me em três, durante a manhã num local, à tarde noutro e a noite chegará e estarei a trabalhar numa terceira ocupação. Em nenhum dos três desempenharei as funções das licenciaturas que estudei. Eu não vou à manifestação porque toda esta revolta que me dizem correr no mundo virtual não a sinto nas ruas, as ruas estão desertas e ocas de ideias, as pessoas revoltosas querem muito, dizem muito, agora todos têm opinião, todos irão sair aos gritos no sábado mas no domingo tudo estará igual, exactamente e penosamente igual. As pessoas continuarão desertas e ocas de ideias, num mutismo que me indigna e quase me enoja.

Há dez anos estive em Varanasi, naquela que foi a primeira viagem fora do continente europeu e no coração trazia a emoção de estar no país que mais sonhava visitar. Varanasi é uma cidade que impressiona, é o local sagrado dos ghats de cremação e num deles, o maior, conheci uma senhora muito velhinha, o peso dos anos curvava-a e o branco dos olhos impedia-a de continuar a ver a vida que velozmente lhe fugia. Pediu-me uma moeda e apontou com o tímido dedo para a frente e eu, na minha riqueza de menina do primeiro mundo, fiquei mais moribunda do que ela porque compreendi. A senhora juntava moedas para ter a quantia suficiente para comprar a madeira que serviria de alimento para a sua cremação. A senhora adiava a vida até ter a morte em moedas na palma da mão.
Anos mais tarde, no Instituto Português de Fotografia, na antiga Cadeia da Relação do Porto, numa incrível exposição de fotografia da qual já não me recordo o nome, tornei a encontrá-la emoldurada na parede e o branco dos seus olhos perseguia-me e sei que sempre a recordarei até ao dia em que eu própria morrer porque ela, na sua morte, serviu de exemplo para a minha vida.

Não tenho televisão, são poucos e bastante selectivos os jornais que leio, o meu acesso actual à internet é limitadíssimo e restrito apenas ao que considero urgente, como escrever este texto e enviá-lo. Informo-me junto de amigos, em conversas quentes à volta de uma mesa, com o calor da discussão acesa presente. Tenho plena consciência do panorama actual e das restrições que se vivem e é em alturas assim que mais frequentemente me recordo da senhora de Varanasi.
No fim-de-semana passado reparti o meu almoço com um cão que mora no tristemente abandonado Jardim de São Lázaro. Uma senhora de meia idade aproximou-se de mim e sussurrou-me "Por favor menina, olhe, esse cãozinho já o alimentei hoje, dê antes a sua comida à senhora ali sentada, que ela passa mais fome que o cão".
Se me tiram algo, se o Estado é obsceno e prefere cortar nos direitos e nos ganhos dos trabalhadores em vez de imputar essas medidas exclusivamente aos grandes grupos económicos, eu não vou desanimar. Se o Estado não cuida dos mais pobres, de quem passa fome, o Estado não existe, o Estado somos nós. É nossa obrigação cuidarmo-nos uns dos outros.

Quanto mais me calcam e oprimem mais vontade me dá para lutar e agir. Se me tiram uma percentagem nos ganhos e me aumentam uma nos impostos, não vou gritar para a rua num acto que em nada fará mudar esses valores. Vou procurar outro caminho, outra solução. Gostava que não fosse o dinheiro a maior motivação actual e sei bem que ele pode não ser a felicidade mas contribui definitivamente para ela. Mas é preciso um despojamento progressivo, um querer viver de uma forma mais justa, mais saudável.
Enquanto o paradigma actual de qualidade de vida se basear em adquirir constantemente produtos caros, de marca, os modelos tecnológicos mais recentes e mais dispendiosos, nada se alterará de facto. É necessário que imediatamente se fomente o consumo interno, mas um consumo consciente e de pequena escala, sério, reflectido, ecológico. É fundamental não desanimar nem ceder aos sucessivos e repetidos discursos da comunicação social em que a temática actual é só e apenas uma, desestimular o prazer de viver. Tudo está em sintonia, as notícias sucessivas e deprimentes, a sociedade do espectáculo negro, desinteressante, aculturado.

E para quem acredita no Estado, é fundamental que se exija transparência política, justiça tributária, justa e equitativa. Uma medida ao alcance de qualquer cidadão é a participação no orçamento participativo, no qual o dinheiro autárquico, que é como quem diz, o nosso dinheiro, é decidido em prol do desejo votado pelos próprios cidadãos.
É necessário um abandono progressivo dos shoppings e promover o comércio tradicional. Compro em mercearias e em nada me sinto prejudicada com os preços proibitivos praticados pelas grandes superfícies e supermercados.
São necessários menos carros e mais utilização dos transportes públicos, mais bicicletas e menos fumo. Menos computadores e mais livros. Menos passeios em locais fechados e mais tempo em família em jardins que, invariavelmente, se encontram sempre desertos.
É preciso não desanimar, encontrar soluções, alternativas ao alcance e à medida de cada cidadão. Saber quem ao nosso lado vive com fome e partilhar, com um sorriso, uma história, sopa e pão e diminuir assim também a fome de solidão em que tantos se escondem. É fundamental voltar à terra, plantá-la, adormecer ao sol, quer seja em pequena escala, nos quintais, em parcelas partilhadas ou num único vaso apenas.

É necessário apoiar projectos comunitários, a ocupação útil dos espaços abandonados, dar vida aos bairros, às aldeias desertas e devolver efectivamente o país aos seus habitantes.
São necessárias acções directas e imediatas. É necessário e fundamental que cada um seja o político de si próprio porque só desta forma cada um conseguirá viver com a consciência tranquila e a vida terá verdadeiramente uma única cor, a da liberdade.

Ana Cancela


Texto originalmente escrito para o Porto 24 : http://opiniao.porto24.pt/2012/09/14/a-anatomia-da-revolta/


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