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Crónicas
Janeiro 2008

agra+monte =
‘morro’ de amargura.

Como eternizar os mortos? A preto e branco ou a cores? Em mármore ou em flores de plástico? Num passado pacífico ou num presente frenético?

Quando entramos no Cemitério de Agramonte, no Porto, encontramo-nos com a sua parte antiga: lugar silencioso, quase extra-terreno; local em que planamos entre as pedras e as esculturas, em que quase levitamos, em que a paz interior é presença constante; espaço de alienação, de reflexão, de fuga ao mundo, de introspecção, de consciencialização de mortalidade e de plena aceitação desse fim. Os nossos olhos vêem a preto e branco:
materializam-se nos dos gatos que por lá vivem e transformam todo o ambiente nesse monocromatismo profundo. O corpo não se cansa, não há tempo, não há ‘ter-que’. A morte deixa de ser temida, passa a ser compreendida. O ambiente é triste, mas encerra uma tristeza belíssima – daí a paz, daí a fuga, daí a compreensão.

Mas, ao atravessarmos o cemitério, o nosso silêncio é sufocado pelas cores berrantes, pelos laços exagerados, pela amontoação de campas, de gente – chegámos à parte nova. Os olhos doem e tudo o que foi construído no caminho até ali é destruído num instante de segundo. A morte é escondida por flores de plástico, as palavras que desejam paz eterna estão cobertas com o peso alucinante de correria e banalização – a busca exagerada da beleza institucionalizada transforma a tranquilidade dos mortos num frenesim delirante e consome o seu sossego (e o nosso).
O tempo existe e escoa-se rapidamente. Opta-se pelo mais fácil, pelo mais óbvio, pelo mais vistoso, pelo mais exagerado, pelo mais falso: até na morte, se plastificam, se cobrem de máscaras. Não se respira: sufoca-se.
As imagens chegam-nos a mil fotogramas por segundo, invadem-nos como a publicidade, prendem as pálpebras com agulhas: o cérebro inflama-se, tudo se torna insuportável. E é tanta-tanta coisa, que se torna em nada – a vela está caída; tudo o resto é incógnito; todos são anónimos. Escondem-se os mortos; esquecem-se que viveram; e nós, quem somos?

Joana Soares

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