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Crónicas

Janeiro 2011


Do negócio da cultura para a cultura do negócio, e volta

A Cultura está a passar um ponto de viragem. Se por um lado os avanços tecnológicos democratizam o acesso à produção de cultura, esses mesmos desenvolvimentos universalizam o consumo gratuito das ditas produções, levantando desafios importantes no que toca à sustentabilidade da produção cultural. Veja-se o caso da música.

Aos compositores de música electro-acústica de pouco lhes servem instrumentos mais ou menos bem enlatados em formato de Zeros e Uns disponíveis em plugins para software de edição digital como o Garage Band, Pro Tools ou Digital Performer.

Para gravar boa música electro-acústica são necessários bons instrumentos electro- acústicos. Esses, por seu turno, precisam de ambientes que sustentem a expansão das ondas sonoras que emitem, para que soem como devem soar e possam ser gravados.
Precisam ainda de ser fielmente captados para que ao ouvinte lhe seja transmitido, tão fielmente quanto possível, o real som dos instrumentos. Para tal são necessários estúdios de gravação com dimensões que respeitem a acústica dos ditos instrumentos e com tecnologia analógica (e em alguns casos digital também) que consiga um registo fiel do que foi tocado.


E por falar em tocar, os instrumentos electro-acústicos precisam de músicos que deles saibam tirar proveito, o que implica anos de treino e estudo fundamentais para que a música tenha aquilo que lhe dá sentido e que suporta a sua existência como forma de arte: expressão.

Quero com isto concluir que fazer música electro-acústica é um processo que envolve investimentos elevadíssimos por parte de quem a produz, e que por isso mesmo tem de ser de alguma forma subsidiada sob pena de não ter viabilidade para além da sala de jantar de qualquer pessoa com uma guitarra a entreter 4 amigos.

Do ponto de vista do consumidor porém, toda a música deveria ser gratuita, aliás assim como a comida, a roupa, as viagens de avião, o Moët et Chandon, a cerveja, as casas onde moramos, as putas e outros vícios. Se os bens físicos estão, pelo menos para já, protegidos da transacção grátis (se excluirmos o roubo), já os bens digitais (ou digitalizáveis) não estão. Nesse caso, o roubo é fácil de executar, difícil de detectar, e por isso mesmo interessa à grande maioria da população, pelo que depressa foi transformado num valor que, mais do que aceitável, parece óbvio aos olhos de qualquer parolo.

Com um rótulo menos doloso como “descarregar” ou “ripar”, gamar artistas usufruindo do seu trabalho sem os remunerar tornou-se numa espécie de orgia social na qual a maioria da população gosta de participar, qual missa dominical, e à qual os artistas lesados terão de aprender a responder debaixo da premissa de que ou aceitam a nova regra ou santas páscoas. Sobre essa resposta já falarei.

Podemos argumentar que este novo modelo de consumo de cultura musical é a consequência inevitável de anos de exploração do público por parte das editoras discográficas. Afinal, o aparecimento do CD poderia ter resultado num abaixamento dos preços dos discos uma vez que era um meio mais barato de produzir. Em vez disso, o preço subiu debaixo do discutível argumento de que a qualidade era superior à do vinil.

Incauto, o público julga ser o artista o grande beneficiário da subidas dos preços da música e, como tal, o arquitecto chefe desse roubo com o qual vive em faustas condições à custa da exploração da manada, merecendo por isso agora um roubo em contraponto, de preferência maior.

Pelo contrário, essa subida de preços beneficiou apenas as editoras. Para aqueles de inclinação contabilística, ao autor de uma obra musical é dada uma comissão de 2% sobre cada venda (e zero para além disso) - o que me faz lembrar um negócio de grande concentração no Marquês de Pombal e em Coelho Neto no Porto, onde quem produz também é pago nessa base, ficando o resto para a “estrutura comercial e de gestão”.

Contas feitas, aos artistas mais lhes vale a edição própria ou, numa altura em que as vendas desapareceram com a pirataria, oferecer o que produzem, já que 2% ou 98% de coisa nenhuma dão exactamente o mesmo resultado. Mas isto levanta problemas de sustentabilidade por um lado e de gestão por outro.

“Ganhem com concertos!!!!”, grita o público enquanto faz scrobbling de mais um tema descarregado ilegalmente, que ouve com acentuado deleite, sentindo, não só as vibrações acústicas, como o cheiro do pato que lhes permite tão precioso momento. Quais concertos, pergunto eu? É que os concertos (os tais cuja quantidade e qualidade contratual permitem a subsistência do artista) aparecem se houver uma máquina promocional, por rudimentar que seja, que até agora era parte do papel das editoras que a subsidiavam com a tal venda de discos.

As editoras estão hoje decididamente rendidas à cultura do negócio, tendo-se esquecido do negócio da cultura: trabalham para resultados trimestrais, estando-se nas reais tintas para o desenvolvimento artístico, perseguindo antes música de produção mais barata (electrónica, programada numa sala de jantar com um portátil e uns auscultadores, e por conseguinte com maiores margens) mostrada ao público numa bandeja com um par de rijas mamas ou 6 abdominais bem desenhados, impingida ao público através das rádios onde os grandes grupos aos quais pertencem têm enorme peso comercial por lá gastarem umas coroas em publicidade, peso esse que usam para definir a playlist e aquilo que o povo gosta ou deve gostar.

Então e se os artistas retomarem as rédeas do negócio da cultura? Isso é o que terá de acontecer, mas não é fácil não só pelas razões acima. A produção artística e a promoção artística levam tempo, recursos e exigem skills diferentes uma da outra. Se um artista não tiver ajuda profissional na promoção que lhe garanta melhores hipóteses de sucesso comercial com o qual pague a renda, vai ter de arranjar a ajuda que conseguir, talvez a dele próprio.

O problema nesse caso é que da mesma maneira que não é fácil ser simultaneamente engenheiro de software, contabilista, relações públicas, guru de marketing, copy writer e web designer, não só pela complexa acumulação de skills necessários mas pelo tempo que requerem, também não é fácil ser compositor, agente, editor, promotor, instrumentista e letrista, ensaiar em Valença do Minho e ao mesmo tempo vender um concerto em Vila Real de Santo António. É difícil desenvolver e acumular todos esses skills e conseguir fazê-los bem no tempo que há (24 horas por dia, segundo a última contagem).

Outro ponto a considerar é que auto- subsidiar a produção artística não enlatada não é fácil. Eu estou no meio de um processo desses, de momento contabilizado em cerca de €10,000 de aluguer de estúdio e serviços de produção associados, outro tanto para re-produção mecânica do livro e disco que pretendemos lançar, a que acrescem depois custos de promoção, investimentos que nem todas as bandas, nem negócios, têm condições de suportar e arriscar!

A grande necessidade actual é portanto, abolir a cultura de negócio com que editoras promovem e o público consome música - e com a qual argumentam (embora de lados opostos) em relação aos actuais desafios - e fomentar o negócio da cultura que a sociedade precisa para continuar a ter artistas que lhe forneçam as emoções que todos procuramos nas várias formas de arte, reconhecendo-lhes a necessidade de subsistência e o direito ao benefício financeiro como qualquer outro profissional.

Joe Medicis


Joe Medicis é guitarrista e cantor do grupo Trabalhadores do Comércio, que desde 2007 disponibiliza gratuitamente toda a sua produção musical no site do grupo, quer para ouvir online quer para descarregamento. Os Trabalhadores auto-subsidiam toda a sua produção, por isso mesmo gravando nos melhores estúdios da Península Ibérica, com os melhores recursos técnicos e humanos. Os Trabalhadores gravam “live-to-tape” para garantir que a energia “live” do grupo é captada em disco. Joe vive em Londres com os seus 3 filhos e mulher.

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