Crónicas Outubro 2016 Pedaços de Pensar Grande
Este texto começou a ser pensado a meio de uma caminhada urbana, durante uma conversa sobre a ideia de “Processo” com um arquiteto francês.
Desde o meu próprio mundo de pessoas e processos, trazido da área da Psicologia, - tão aparentemente longe do da Arquitetura – ia, no entanto, vendo como se criavam pontes óbvias entre a sua e a minha realidade de intervenção.
Enquanto me explicava detalhes sobre a importância da interação permanente com os vários intervenientes na obra; sobre a atitude de atenção e adaptação constantes que são evocadas em cada momento; sobre o valor da comunicação permeável e ampliada nas várias fases de obra, ia-se-me tornando claro que não era só ao mundo de alicerces, materiais e infraestruturas que esta ideia de “processo” se aplicava.
No reino de tudo o que envolve o Humano, a importância que se dá ao processo é, muitas vezes, o que marca a distância entre a satisfação e a incoerência com a linha de chegada de qualquer empreendimento; o que faz com que a ideia inicial se reveja ou não no resultado final e o que explica o que acontece efetivamente no caminho.
Estruturalmente a ideia de valorização do processo - ou do caminho - é ampla e entendida desde várias abordagens.
As ideias-base destes dois autores resumem bem a importância de dar espaço e atenção à caminhada, e ligam-se a aspetos fundamentais do que é o próprio desenvolvimento humano: a escuta, a capacidade de adaptação, a flexibilidade, a oportunidade para síntese e integração. Só valorizando o processo se poderá recolher todos estes fatores numa construção (de casas, carreiras, famílias, sociedades) com sentido, coerente e baseada em fatos, mais do que só ideias.
A própria Filosofia traz esta noção de construção permanente realçada. Segundo uma definição de Manuel Sérgio (professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto), “não obramos em benefício do conhecimento, limitando-nos ao saber fenomenal, mas partimos dele, para construir conteúdos radicalmente significativos e fundamentadores.” Uma vez mais a ideia de que é no caminho, no acrescento e retirar constantes, que o conhecimento evolui e se constrói, partindo de pedaços do que foi até se tornar em sucessivos pedaços do que pode ser. É, pois, no processo que reside o filosofar, e não no corpo de conhecimento fechado e guardado a que se chega.
Também na Psicologia, em particular através da área da Psicologia Positiva, que se debruça sobre o florescimento humano, sobre a forma de chegar ao melhor de nós como indivíduos e sociedade, se encontra a valorização do processo.
Desde o meu ponto de vista, só as sociedades que sejam capazes de uma valorização do processo, dessa atitude de “estar a caminho” com a consciência de que é o caminho e não a chegada, que justificam a própria viagem terrestre, é que desfrutarão da globalidade do que é dado como “vida”.
É necessária a abertura ao que possa suceder, a flexibilidade para deixar fluir o caminho, sabendo não antecipar ou aferrar-se aos planos iniciais, mas mantê-los firmes e claros na mente somente como orientadores de vontades. Deixar que sejam eles os que marcam o trajeto geral e despoletem a energia de ação e o foco de trabalho, mas permitindo uma atitude de humildade perante o que vai sucedendo, sabendo compor com os imprevistos e com os novos dados só descobertos no decorrer dessa viagem. A realidade desejada vista como um fio que se tece à medida que vai sendo usado e se vai encontrando o terreno da realidade.
No fundo, uma atitude vital de abertura à ideia de processo afetará não só os caminhos individuais, mas o próprio bem comum. O ambiente, os outros, as mudanças estruturais de sociedade, as situações globais, e todos os dados que delas possam advir, serão também incorporados e tidos em conta na construção desse caminho onde a palavra “processo” seja honrada.
Deste modo, aceitar que cada construção terá mais a ganhar com a forma de viver o processo do que com os resultados fixos definidos previamente, devolve ao agente de construção a responsabilidade e o poder. Diz-lhe alto: “Será de ti e do que saibas ouvir, ver, integrar, que dependerá a viagem até ao destino que desejas.” É aceitar a possibilidade de que o inesperado aconteça e permitir-se abrir a ela, compor com ela.
É saber dizer “sim” e “não” várias vezes durante o dia; repensar rotas; ser capaz de voltar para trás e de mostrar valentia de parar para repensar. Só esta atitude permitirá a flexibilidade de criar com o real, em vez de com o imaginário desejado.
E, no final, é esta abertura ao que sucede, ao fluxo natural do acontecer em construção, que permitirá também o desfrute, o saborear, a liberdade de estar em situação e no mundo em mudança.
Estar a caminho é admitir a riqueza do imprevisto e saber que o final conterá a certeza dos planos iniciais mais a realidade vista, (revista) e sentida com presença nos terrenos que os passos pisem.
Não é, como diz Kavafis, a chegada ou a construção de Ítacas de várias formas que marca o desfrutar da viagem, mas a forma como no caminho até lá se ouçam e se integrem os dados das marés e de outros marinheiros que velejam.
Regresso à conversa que despoletou este texto fortalecida da certeza de que entre a Arquitetura e a vida existem afinal mais pontes do que aquilo que o betão pode segurar. E é seguramente no respeito pelos trajetos, materiais e intervenientes que se desenhem nesse construir que se farão ou não obras físicas ou humanas que valha a pena honrar e seguir.
Fotografia by Miguel Marecos
Edite Amorim, 30 Outubro'16
Processos – Estar a caminho de.
Ouvia atentamente o que me contava sobre a importância do “processo” em todo o momento do projeto de obra, sobre a forma como a permanente co-construção se dava, em cada um dos passos. Em vez de ouvir falar de desenhos, maquetes, linhas ou definição estética, ia ouvindo falar sobre os materiais e os seus comportamentos no espaço e no clima; sobre a forma como os trabalhadores podem conhecer o projeto e identificar-se com ele; sobre a necessidade de ouvir o terreno; sobre as mudanças de luz só visíveis durante a construção; sobre o estar presente, sem preconceitos, no caminho entre o projeto em papel e a obra realizada em betão, tijolo, madeira...
Esta é, aliás, a ideia que mais associo ao conceito de processo: o caminho, estar a caminho.
E é esta atitude fundamental de transição, de construção permanente, de foco no intervalo entre o “desde” e o “até”, que potencia, na minha opinião, qualquer processo construtivo, seja de paredes, tetos ou humanos.
Começando pela própria poesia, e recuando até aos finais do século XIX, já o grego Kavafis tornava o seu famoso poema “Ítaca” numa ode à atenção ao caminho até lá chegar (bem mais importante, segundo ele, do que a chegada a Ítaca em si mesma). A ideia continua na contemporaneidade do espanhol Antonio Machado, imortalizado pelos seus conhecidos versos “Caminante no hay camino, el caminho se hace al andar”, em que os passos são privilegiados como parte da caminhada vital.
Eduardo Punset, investigador catalão, fala disso de forma clara, quando comenta que “a felicidade está na sala de espera da felicidade”. É na espera, na construção, na preparação, naquilo que se faz (ou não se faz) no caminho, que se marca a direção a chegar.
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