Crónicas

Agosto 2016


Pedaços de Pensar Grande
Não ter medo das certezas

As certezas são empurrões dados pela parte interna do estômago.
Nascem de uma sensação escondida que grita baixinho, mas com intensidade de pleno pulmão, numa língua nem sempre fácil de ouvir e entender.
Às vezes desaparecem, tão depressa como chegaram, levadas por qualquer pedaço de argumento racional, de filtro de “correto”, de um qualquer “Tem de ser!” ou “Não vai dar...”, que as esmaga sem piedade nem arrependimento.

As certezas são caminhos traçados, rotas desenhadas sem necessidade de mapas ou astrolábios, que levam pela frente qualquer cancela ou lomba de estrada.
São os pedaços invisíveis de verdade que mostram o caminho certo. São o que chega mesmo antes de outros tempos de pensar.

As certezas fazem ir, fazem acontecer, fazem ser.
As certezas são.
São. Em forma de verbo conjugado no presente.
As certezas sabem, por isso, mais. Vindas de lugares mais fundos, as certezas sabem tudo.

E ainda assim, às vezes o medo ganha-lhes força e terreno; grita mais alto do que elas, impõe-se à força orgânica que lhes é intrínseca. Pára-as, troca-as, altera-as, modifica-as, subverte-as, mixuruca-as até murcharem e caírem de podres, de velhas ou de malucas. Chega-lhes por trás e sussurra-lhes pedaços de convenções, de sentidos comuns de sensatezes já gastas, de palavras de sempre. De coisas que se perpetuam em fórmula única e repetida ao longo dos anos, das gerações, dos tempos.
Chega o medo, munido de tudo isso, carecendo de alma, de visão, de desejo, de perspetiva, de amor, de sentido guerreiro, de esperança, de capacidade de voar, e ganha.

E é assim que o Amor, apresentado de modo evidente e óbvio, redondo, cheio de sentir e de promessa cumprida, é atirado para trás ou posto em stand-by; é recusado ou anulado, como se se medissem riscos em vez de sopros.

E é assim que, ainda que a proposta de trabalho desencaixe do desejo claro que se tinha, do caminho que se começara, do sentido que se desenhara, é aceite e assinada, assumida e começada, como se medissem certos e errados em vez de construções e sentidos.

É assim que as possibilidades de viagem, de conversa, de volta de carrossel que apetecia, são recusadas, rebatidas e confrontadas com o “fora de tempo”, o “fora de lugar” ou o “fora de questão”. Como se se medissem foras em vez de dentros de histórias que se querem construir.

O medo tem, sobre as certezas, um peso desmedido e castrador; é capaz de emudecer os sons mais puros, dos que chegam de dentro, e anular a visão desimpedida de perspetivas de futuro sem qualquer nevoeiro.
Parecem feitos de auto-estradas e assemelham-se a estátuas erguidas, coisas vistas ao fundo da rua e aceites como centros de rotundas.
Fazem com que as certezas pareçam sonhos, ilusões, coisas irrefletidas e utópicas, da ordem do sonho, do etéreo, da loucura ou do mais-além.

Mas, no fundo, o medo é cobarde e frouxo, é encolhido e atrasado, é pequeno e apertado. É a escolha certa numa situação de perder-perder; o recurso fácil num caminho que prefere a relva aparada às árvores para subir e se erguer.

O medo prende. Corta. Normaliza. Inibe o certo vindo de dentro, baralha a claridade dos dias com consciência.
Garante que só os Amores seguros sejam escolhidos, que só os trabalhos seguros sejam conseguidos, que só as viagens seguras, as conversas seguras, as aventuras seguras sejam realizadas, começadas, escolhidas.

E garante, no fundo, que nos pareçamos todos. Que seja tudo correto, encaixado; que tudo gire sobre as mesmas rodas e se paute pelas mesmas formas, sem necessidade de criatividade, de luz, de vozes que falem desde dentro, como pontapés dados pela parte interna do estômago.

O medo arrasta a possibilidade por um cano abaixo muito fundo.
As certezas aumentam-na, fazem-na crescer, e desenvolvem-na. Tornam únicos os passos, como únicas são as vozes que se elevam desde cada sentir, desde cada estômago.

As certezas de dentro são coisas certas de fora.
São vozes com mais luminosidade e caminho, são potenciadoras de verdade, procuradoras de horizontes.
E são elas, as certezas, que permitem as histórias de Amor com olhos que brilham pela eternidade, com episódios que se escrevem e se guardam em cartas que nunca se deitam fora.
São elas que permitem trabalhos que se aguentam à prova de horas e de esforço, desempenhados com força total, alinhando pessoa e profissional numa só palavra, num só caminho.
São elas que fazem de cada vida uma vida. Com viagens, experiências, aventuras e conversas que se distinguem e destacam, que se vivem e se sentem ao longe como caminhos e não pedaços.

As certezas são. Certas.
Como certa é a vida feita com o ouvido pronto a ouvir os pontapés de dentro. A ouvir tudo. E a só não ouvir o medo.

“Temos de aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso, o mais inexplicável.” Rainer Maria Rilke, in “Cartas a um jovem poeta”.

Fotografia by Miguel Marecos


Edite Amorim, 26 Agosto'16
www.thinking-big.com

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