Crónicas

Julho 2016


Pedaços de Pensar Grande
A celebração possível num mundo de contrastes

Acorda devagar, afasta o lençol, espreguiça o corpo. O corpo mexe, a cortina abana um pouco, o quarto cheira bem.

               Estala a primeira bomba, o caos instala-se, os vidros estilhaçam-se, os objetos perderam a forma, os corpos à volta despedaçam-se.

Levanta-se com calma, caminha até à cozinha, enche a caneca de água fria e bebe sem pressa, enquanto nota com prazer que hoje é mais um dia de suave calor.

               Os corpos que não morreram abrem os olhos em horror, os gritos começam, o sangue escorre, a beleza desapareceu.

Escolhe a roupa que vestirá, lava a cara com gosto, pega no que é seu e sai para a rua com uma peça de fruta lavada, ainda a cheirar a fresco. Há vida.

               A ajuda começa a mobilizar-se, as mãos não chegam a todos, os pedidos de auxílio crescem e aumentam, os corações aceleram-se, já prestes a parar. Há morte.

Das varandas de paz observamos o mundo de dor.
Do conforto das vidas que correm suaves observam-se as que se perdem em morte.

O mundo move-se em contrastes de caos e beleza, de justiça e de perda, de tudos e de nadas jogados em segundos imprevistos.
Desde o conforto que nos é dado sentir chegam-nos pedaços violentos que viram outras vidas de pernas para o ar, de pernas para dentro, de pernas por todo o lado.
A vida e a morte convivem nos dias, em dias ao mesmo tempo que decorrem contrastantes e ferozes. Contraste que povoam pontos diversos de um globo terrestre que por vezes se sentirá alienígena.

Somos, ainda assim, os pedaços de sorte geográfica que sobrevivem ao caos. Somos, apesar de tudo, os habitantes de varandas desde onde se assiste ao por do sol com calma, num Atlântico estendido água adentro.
No pedaço (ainda) intocado de Mundo, celebramos vitórias, saíamos à rua, vestimos cores contrastantes, abraçamos estranhos em praças públicas.

É um contraste feito mundo, com dias que se criam e um globo terrestre que continua a girar e a fazer-se, alheio a diferenças e paradoxos. Um mundo feito de corpos que estalam e se desfazem em morte, e de corpos que estalam e se fazem alegria. De euforias coletivas que levantam heróis musculados em braços e de pânico generalizado que leva corpos mutilados nas mãos.

Somos dor e perda, efusividade e celebração.
Somos o Todo do Humano que reflete cor e ausência de luz; facetas que brilham e facetas que se perdem, explosões de ação e de imobilidade. Um todo que se expande em possibilidade, entre bons e maus indefinidos, entre a sorte e o azar não escolhidos.

No meio deste puzzle por fazer, neste “cara ou coroa” por lançar, o tempo de refletir existe e impõe-se.
O que fazer com a sorte destas varandas estendidas sobre o mar? Como continuar a celebrar a vida própria quando tantas vidas alheias se afogam em mares não distantes, explodem em vizinhanças terrestres, ou são sequestrados à liberdade em injustiças totais?

Celebrem-se pois, os pequenos nadas dos dias; a sorte e a possibilidade de abrir um frigorífico, de pescar à linha durante horas, de trazer queijo ou alface de uma mercearia. Celebre-se a possibilidade de acreditar que se voltará a abraçar um amigo que não se vê há dias, que se chegará ao bacalhau do Natal e que se terminará um curso recém-começado.

Celebre-se o tempo de ler num parque, as bolhas de sabão sopradas ao lado de umas mãos pequeninas, a roupa fresca que cobre o corpo são.
Celebre-se o Amor, trazendo-o com a intencionalidade de quem envia ao resto do mundo o melhor dos pensamentos, tornando-o maior do que os corações que o albergam.

Celebre-se, repito-me a cada dia, o pequeno de cada hora, de cada encontro, de cada privilégio, de cada conquista, de cada sentir.
Repetindo conscientemente que a sorte é uma sorte. Sabendo desde dentro que enquanto os pés se apoiarem em varandas sobre o sol e sobre o mar, os olhos podem fechar-se seguros, em condições para celebrar a sorte de um jogo ganho ou o inesperado de um amor de verão.

O ruir do mundo observa-se com empatia e proximidade, afeta os corações e aperta-nos os sentidos. O apelo desafiante regista-se, no entanto, na capacidade simultânea de afinar o ouvido para o suave zumbir das abelhas, para a voz de crianças pequenas a crescerem ao sol, para o som da ventoinha que afasta o calor.

O mundo coexiste em contrastes. Aprender a senti-lo com tudo o que de mau e de bom encerra será, porventura, aquilo que nos tornará humanos mais conscientes dos riscos e da sorte simultâneos a cada ação.

Que a sorte das varandas não deixe de se ver e sentir, que o barulho de bombas não apague o ir e vir do mar, que o medo não faça fechar os olhos.
Porque só de olhos bem abertos poderemos continuar, a cada dia, a procurar salvar o mundo com a beleza de que também é feito.

Fotografia by Miguel Marecos


Edite Amorim, 19 Julho'16
www.thinking-big.com

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