Crónicas

Dezembro 2015


Pedaços de Pensar Grande
“Eles” e “Nós”

“Nós” somos os que já cá estavam, “Eles” são os que para cá querem vir.
Assim têm alguns vindo a dividir os pronomes pessoais quando a conversa fala de passos refugiados.

Não acredito em pronomes pessoais quando o que se conjuga é o tempo do Humano e o verbo “viver”.
“Estamos no mesmo tempo de Humanidade”, disse por estes dias um amigo. E, no mesmo tempo da Humanidade não há - não pode haver - “Eles” e “Nós”.
Existimos. Co-existimos neste tempo ao mesmo tempo.
Diferentes nas diferenças habituais, mas com muitas mais semelhanças do que coisas que nos façam espreitar por cantos de olhos desconfiados.

Estive, há menos de um mês, a aprender isto em primeira mão com os vários passos em transição que fui procurar, primeiro num campo de refugiados na Macedónia e depois em campos de acolhimento em Berlim. 9 dias em que fui ver o que era isso do “Eles” e em que vim com tudo conjugado num indubitável “Nós”, que nos inclui a todos. Narrei o que vi aqui (www.stepsintransition.worpress.com) e resumo uma parte neste texto.


Durante 9 dias comi sandes ou laranjas enquanto conversava, no meio de confusão, com gente que me contava como era a cidade ou vila de onde vinha, e ouvia como era a minha. Falámos dos cafés preferidos, dos almoços de família, das coisas que estudámos, dos parques por onde andámos. Nenhuma diferença maior do que aquela que encontro entre amigos de outros lugares do mundo. Entre as nossas casas, escolas e cafés há só um abismo: nas suas caem bombas que estilhaçam janelas, paredes, familiares e esperanças de futuro. Na minha e nas que eu conheço de perto, não.
Nas “nossas” vidas “nós” não fazemos filas durante horas para receber água potável e alguma comida, nem precisamos de despedir-nos das pessoas com quem vivemos de cada vez que saímos de casa, não vá ser que não voltemos. Nas “deles” sim.


Esta foi a grande diferença que encontrei nas tantas conversas que tive nas tardes com sol, nas noites com frio. Histórias iguais às minhas histórias, com cenários que se diferenciam pelos sons de estilhaços e pelo pó de casas destruídas.

Durante dias parei os olhos nestes passos em transição; atenta aos detalhes no meio do caos de um campo de refugiados, entre pessoas que chegavam e partiam aos milhares, entre sacos e crianças a debaterem-se pelo pouco espaço das mãos, entre os olhares exaustos de quem traz tudo o que tem no que o corpo pode carregar.

E eis alguns exemplos que vi, no meio desse caos, e sobressaindo dele:

Um pai a trocar a fralda ao filho, depois de alisar cuidadosamente o pano que lhe servia de apoio; era só um pano, o banco era duro e de madeira, os vizinhos eram gente desconhecida, o comboio tardaria, mas o bebé era mudado num pano sem rugas a incomodarem o pequeno corpo frágil.


Um estudante de medicina, entre tantos outros estudantes e profissionais já formados, a mostrar no seu telemóvel a fotografia do certificado das disciplinas já feitas, esperando a validação para seguir o caminho começado.


Uma mãe a tirar o pé da filha pequena das galochas, para mostrar o pedido de meias que não conseguia exprimir por palavras e que, antes de lhas calçar, numa noite de frio e prestes a embarcar num comboio sobrelotado, lhe retirava, em gestos cuidados, as pequenas areias que pudesse ter nas plantas dos pés 32.


Uma irmã de 11 anos, de olhos luminosos e hijab a cobrir-lhe a cabeça, a dividir o entusiasmo entre os marcadores que usava para colorir o seu desenho, e os que passava ao seu irmão semi-cego, para que também ele pudesse usufruir deste tempo curto de ser criança, na tenda da Unicef.


Os lenços coloridos arranjados à volta da cabeça, em gestos de cuidado e esmero, diante de espelhos de plástico de casas de banho coletivas onde o frio entrava pela porta aberta.


Um primeiro banho dado em conjunto por um jovem casal, nas casas de banho públicas de uma escola de Berlim, com o cuidado todo posto naquele corpo delicado e sem salpicos nos olhos.


Várias avós a viajarem com as suas famílias que lhes aconchegavam o xaile, pediam umas meias extra para os seus pés pendurados nas cadeiras de rodas, ou um pouco de leite para compensar as sandes não comidas por falta de dentes. Esquecidos,eles próprios, da falta de um casaco ou da sua sandes.


Alegria, risos, palmas, sorrisos bons entre crianças que não se esqueceram de ser crianças, apesar das poucas horas de sono, da comida racionada, do frio ou da confusão de embarque em comboios para os quais depois eram puxados por um só braço, na pressa da subida.


Inúmeras ofertas e partilhas, do pouco (tão pouco) disponível. O prazer de oferecer, de partilhar, de convidar, que não se perdeu mesmo tendo pouco para si próprio e havendo falta de espaço a que chamar seu. Gomos de laranja, meias tangerinas ou bananas inteiras, oferecidas como presentes de gratidão pelo bocadinho passado a conversar, pela presença e o aceno no momento do comboio prestes a partir, pela companhia por mais minutos.
Ter pouco e oferecer ou partilhar, provocando sorrisos de ambas as partes, alheios à falta que isso vá fazer depois do sorriso.


Homens a carregarem as suas crianças e os seus bebés, a trocarem-lhes fraldas, a darem-lhes banho, a brincarem com eles, a taparem-lhes o sono, ainda que o sono fosse no meio do chão, em horas de espera que não sabiam quanto se prolongariam.


Uma irmã adolescente de pés encharcados preocupada em arranjar bem o gorro de lã da irmã mais nova para que o frio não lhe chegue, contente, apesar do frio que sentia, por ter sido ela a cair às águas gregas e não a sua “pequena flor”.


Um grupo de 10 pessoas, a dançar improvisadamente numa noite fria de Berlim, no pátio da escola a que chamavam casa coletiva há semanas, com um entusiasmo mantido à força de palmas e risos, enquanto os corpos se abanavam para aproximar a alegria e afastar o frio.


A palavra “Obrigada” repetida em várias línguas e em todos os olhares, vezes sem conta. Sincera, não subserviente, não apequenada. Inteira e dita, mesmo sem ser dita, com uma atitude de reconhecimento. A gratidão a escapar-se direta, numa mãe cansada a quem se embalou o filho um momento, numa família a quem se ajudou a subir para o comboio, numa menina a quem se ajudou a calçar umas luvas, numa família com quem se ficou a conversar... “Obrigada”, repetido em mais línguas do que as entendidas, em olhares de linguagem universal, e sempre, sempre presente em cada gesto.


E a lista continuaria, desfiando cenas quotidianas que podiam passar-se em qualquer bairro europeu, em cada família lusa, em cada casa que fosse a nossa, não fossem as circunstâncias duríssimas em que têm que continuar a mostrar-se.

Nesses dias vi falta de privacidade, falta de comida, falta de agasalho, falta de descanso, falta de força, mas não vi falta de exemplos de igualdade de género, de esmero, de cuidado, de delicadeza, de altruísmo, de solidariedade, de cooperação.
Abundam exemplos inspiradores, à vista de qualquer um que veja de perto esta situação e são muitos os exemplos que mostram que as guerras não bombardeiam os valores, a integridade e a dignidade.

Tudo o que vi, trouxe reforçada a ausência de pronomes pessoais que nos separam. Vi-me próxima e parecida, vi-nos parte de algo maior e confirmei uma certeza: os tempos de guerra estão a aproximar-nos e a dar-nos a oportunidade de aprender juntos sobre a beleza da Humanidade.

Os passos em transição trazem mais encaixes e parecenças do que fricção e estranheza. Da forma como soubermos acolher estes passos dependerá a conjugação da Humanidade numa única primeira pessoa do plural.


Edite Amorim, 01 Dezembro'15
www.thinking-big.com/blog

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